quinta-feira, 27 de agosto de 2020

PROGRAMAS ESPECIAIS NOVAS ÁFRICAS - 31ª. MOSTRA INTERNACIONAL DE CURTAS METRAGENS DE SÃO PAULO 2020

Crítica de Cinema

“Estamos cansados da escuridão. Enfrentamos a escuridão por muito tempo”. Essas duas frases, dita por uma das personagens do filme Altas horas (Nuit Debout, 2019), coprodução da República Democrática do Congo e da Bélgica, dirigida por Nelson Makengo, resume bem a proposta da primeira sessão do programa Novas Áfricas, intitulada “Rebelião”. Fazendo uma alusão ao livro Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada, do historiador e filósofo camaronês Achille Mbembe, publicado pela primeira vez em 2003, obra que reflete sobre os impactos do colonialismo europeu no continente africano, os processos de libertação ao longo do século XX e a crítica à permanência da colonialidade na contemporaneidade, o filme de Makengo mostra a noturna Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, onde as casas e ruas são iluminadas por milhares de lanternas portáteis de LEDs. Isso porque as linhas de energia costumam ser cortadas justamente à noite, então as pessoas precisam improvisar soluções para iluminar a escuridão. Três telas separadas expõem essa difícil situação, revelando também as convulsões políticas e batalhas entre gangues violentas de rua nesse país localizado na África Central. Às vezes, as telas mostram a mesma imagem, às vezes outras diferentes: uma mulher segurando um cabo grosso na mão, um vendedor de lâmpadas, pessoas ouvindo as notícias em um rádio portátil. Ao fundo, ouvimos o som do gerador fornecendo a preciosa energia elétrica. O filme mostra que as noites nesta cidade também se tornam possíveis espaços de resistência, em resposta ao abandono da população pelo governo local, cada vez mais obcecado com seu projeto de ascensão econômica.

Além deste filme de abertura, também compõem esta sessão Prisioneiro e carcereiro (Prisoner and jailer, 2019), produção da Líbia, dirigida por Muhannad Lamin, Dízimos e oferendas (Tithes and offerings, 2018), produção queniana dirigida por Tony Koros e Dia negro (Journée noire, 2019), produção do Senegal dirigida por Yoro Mbaye. Em Prisioneiro e carcereiro, por meio de dois personagens, um funcionário importante do antigo regime na Líbia e uma das figuras mais simbólicas do período pós-revolucionário, descobrimos as circunstâncias em torno de um dos eventos mais marcantes da história moderna deste país: o Massacre da Prisão de Abu Salim, no qual mais de mil prisioneiros políticos foram mortos em apenas algumas horas. O filme transita entre o passado e o presente por meio desses dois protagonistas, que trocam o papel de vítima e algoz. A maioria dos eventos e diálogos que aparecem no filme foram retirados diretamente de depoimentos de ex-presidiários e guardas. Já em Dízimos e oferendas, um pastor de uma pequena e humilde igreja cristã, influenciado por programas religiosos estrangeiros exibidos na televisão, e deslumbrado pelo carisma que pode exercer sobre seus fiéis, realiza falsos milagres para aumentar sua credibilidade. Até que um dia, de forma totalmente inesperada e acidental, um milagre acontece, possibilitando-o de alcançar mais rapidamente esse objetivo. Dia negro, por sua vez, explora o descaso do governo local com a educação universitária, em que dezenas de estudantes, muitos oriundos de regiões mais distantes da capital, estão há três meses sem receber auxílio financeiro para custear suas despesas, inclusive de alimentação. Diante deste contexto, um grupo de universitários resolve protestar nas ruas, sendo violentamente reprimidos pela polícia. Entre eles, o personagem Ngor, um jovem e brilhante estudante de Direito, que, relutante no início, decidiu se aliar a seus companheiros e é morto a tiros por policiais.

Na segunda sessão do programa, intitulada “Música e Cinema”, a escuridão perde espaço para as luzes, aliadas a um ritmo intenso e variadas musicalidades. A começar pelo vibrante Zumbis (Zombies, 2019), coprodução da República Democrática do Congo e da Bélgica, dirigido pelo músico e diretor congolês Baloji. A obra, entre outros aspectos, reflete o contexto urbano contemporâneo de grandes cidades africanas, como Kinshasa, capital deste país africano, que transitam entre as culturas tradicionais e as influências das culturas modernas ocidentais. Este filme musical, que apresenta três canções do disco 137 Avenue Kaniama, lançado pelo artista em 2018, “Spotlight”, “Glossine (Zombie)” e “Ciel d’encre”, explora, principalmente, a forma como o universo tecnológico móvel (em especial, os smartphones) tem afetado e conectado as sociedades de diversos lugares do mundo, através da internet. Do mesmo diretor e também com canções de 137 Avenida Kaniama, integra esta mesma sessão os filmes Nunca olhe para o sol (Never look at the sun, 2019) e A pele de Onagro – O azul da noite (Peau de Chagrin – Bleu de nuit). “Nunca olhe para o sol” é uma expressão recorrente que pessoas negras retintas escutam, para evitarem a exposição à luz do sol e ficarem mais escuras ainda. Em torno de um produto fictício de branqueamento no qual a protagonista do filme se banha cerimoniosamente, o criativo Baloji faz uma crítica ao clareamento de pele, frequentemente usado por mulheres, para emular padrões de beleza eurocêntricos. O poema narrado na trama, pela escritora e pesquisadora Dorrie Wilson, por sua vez, é uma declaração à beleza da pele escura, com suas palavras atuando como um contrapeso ao caso de amor químico da personagem com o branqueamento. A pele de Onagro – O azul da noite, filmado na região de Lusanga, na República Democrática do Congo, é baseado na tradição pigmeu do casamento em que um casal está diante de uma instalação vegetal, embalada pela melódica canção em lingala. Esteticamente, há uma série de belíssimos planos que dialogam com a produção contemporânea de alguns artistas africanos, a exemplo do fotógrafo senegalês Omar Victor Diop, do artista plástico nigeriano Yinka Shonibare e da sul-africana Mary Sibande. 

Outro filme presente nesta sessão é Bablinga (2019), produção da Burkina Faso e França, dirigido por Fabien Dao, que conta a história de Moktar, um imigrante burquinense residente na França, que sempre dizia que, quando conseguisse fechar seu bar Bablinga, localizado em frente ao mar, voltaria para Burkina Faso.  A trama retrata a chegada desse dia, seus conflitos internos e as suas dificuldades para partir. Nesse mesmo dia, espíritos se convidam para celebrar a última noite do bar, regada a bebidas e canções. Um toque de Kora (Um air de Kora, 2019), produção senegalesa dirigida por Angèle Diabang, encerra esta segunda sessão. No filme, Salma, uma garota muçulmana, sonha em ser tocadora de Kora, um instrumento musical tradicional que, segundo as antigas convenções, não pode ser tocado por uma mulher. Entretanto, um dia, enquanto buscava a Kora de seu pai que estava em um mosteiro, um monge lhe deu a oportunidade de ter aulas secretamente com Manuel, um virtuoso tocador deste instrumento. Inicialmente distantes pelas normas sociais e religiosas, os dois aos poucos vão se aproximando e se apaixonam, o que cria um grande conflito para ambos.

A terceira e última sessão do programa é dedicada às mulheres africanas, seja em frente às telas, seja por trás das câmeras. A começar pelo belíssimo Mama Bobo (2017), coprodução entre Senegal, Bélgica e França, dirigida por Robin Andelfinger e Ibrahima Seydi. No filme, a protagonista, uma viúva de aproximadamente 80 anos, todos os dias segue para o ponto de ônibus da rua Gomis, em Dakar, Senegal, para encontrar o marido. Enquanto isso, ao seu redor, uma grande obra de infraestrutura a cerca, chamando a atenção para o crescimento urbano da capital senegalesa e os impactos negativos dessas ações de desenvolvimento, na ótica ocidental. Um dia o ponto de ônibus é retirado e isso afeta consideravelmente a vida de Mama Bobo. Já Além do muro (Au delà de ce mur, 2018), produção do Marrocos, dirigida por Aisha Jabour, duas crianças pobres conhecem uma famosa atriz libanesa que vive “do outro lado do muro”, ou seja, em um outro contexto social. Além das diferenças de classe, a trama também destaca outros aspectos da sociedade marroquina, como a opressão e violência à mulher e costumes socioculturais, como o “Eid ul-Adha”, também conhecido como Grande Festa ou Festa do Sacrifício, festival muçulmano que sucede a realização do haje, a peregrinação a Meca. 

Uma volta por Ouaga (Ça tourne à Ouaga, 2017), produção da Burkina Faso dirigida por Irene Tassembedo, por sua vez, explora os bastidores do último dia de filmagens do filme Uma cadeira para dois, sobre um casal de burgueses, ambos com ambições políticas. Porém, nada sai como planejado, uma série de conflitos ocorrem, trazendo uma reflexão bem humorada sobre problemas que podem ocorrer em um set de cinema (baixo orçamento, atrasos nos pagamentos dos profissionais, um diretor desatualizado que nunca sabe o que fazer, um cinegrafista que passa o tempo mandando mensagens de texto para seus amigos, um engenheiro de som que dorme), assim como nas relações pessoais (traição, assédio às mulheres etc.). Para encerrar, Minha amada coesposa (Ma coépouse bien-aimée, 2018), produção senegalesa dirigida por Angèle Diabang. O filme conta a história de duas recém coesposas que vivem na mesma casa e estão sozinhas.  O marido delas não está presente. Ao longo da narrativa, elas realizam suas funções domésticas, transitam pelos mesmos espaços, fazem refeições juntas, mas não conversam. Enquanto executam suas ações, o espectador tem conhecimento de seus sentimentos e reflexões sobre a experiência da poligamia através da narração de cada uma, em voz off.

Pela primeira vez na programação da Mostra Internacional de Curtas Metragens de São Paulo, este programa teve a sensível e cuidadosa curadoria de Claire Diao, diretora da Sudu Connexion, uma importante distribuidora de filmes africanos e da diáspora, com sede na França.





segunda-feira, 3 de agosto de 2020

ARTIGO-RESPOSTA AO TEXTO “FILME DE BEYONCÉ ERRA AO GLAMOURIZAR NEGRITUDE COM ESTAMPA DE ONCINHA”, DE LILIA MORITZ SCHWARCZ


Crítica de Cinema

A princípio, penso que qualquer pessoa tem capacidade e direito para falar sobre qualquer assunto (desde que se respeite, no mínimo, os princípios constitucionais), principalmente em conversas informais ou nas redes sociais, que normalmente não exigem argumentações tão bem abalizadas. Entretanto, quando se ocupa posições, cargos ou espaços importantes e legitimados de comunicação, por exemplo, mesmo falando ou escrevendo um texto meramente “opinativo”, penso ser necessário se cercar de todos os cuidados (pesquisa e leitura ajudam bastante), ainda mais em um texto escrito, que exige leituras, releituras e revisões (pelo menos eu, como professor de Língua Portuguesa, escritor, crítico cultural e pesquisador, penso e faço dessa maneira), com o que se vai dizer, especialmente quando não se é a pessoa mais apropriada para falar sobre um assunto ou linguagem, por diversas razões.

Neste caso, estou me referindo ao artigo de opinião escrito pela professora, pesquisadora e historiadora Lilia Moritz Schwarcz e publicado na Folha de São Paulo, no dia 2 de agosto de 2020. No texto, intitulado “Filme de Beyoncé erra ao glamourizar negritude com estampa de oncinha” (o título por si só já é de um mau gosto terrível, por vários aspectos), a autora tece sua opinião sobre o recente filme dirigido por Beyoncé, “Black is King”, lançado no dia 31 de julho de 2020, uma produção dos estúdios Disney, que faz uma releitura da refilmagem de “O rei leão” (2019). Tenho acompanhado a repercussão deste artigo, desde o momento em que foi publicado, em especial nas redes sociais, com as mais diversas opiniões de apoio e de repúdio ao texto publicado no jornal.

Assisti “Black is king” no mesmo dia, antes desta celeuma toda, e posso dizer que tive uma experiência maravilhosa como espectador diante do que vi e ouvi, falando como um homem negro nascido no Brasil, mas que já dedicou e dedica parte de sua vida a conhecer e pesquisar produções artísticas e culturais do continente africano. Resolvi então escrever um outro texto sobre o filme, dedicando-me quase que o dia inteiro pesquisando e escrevendo algo que considerasse honesto e justo com a produção estadunidense, independente de fanatismo ou admiração pelo trabalho musical da cantora. Entretanto, a ideia deste artigo aqui é utilizar do mesmo direito de Schwarcz de expor sua opinião no espaço democrático, e aí desde já questiono o que seria esse “espaço democrático”, isso porque, assim como eu, pouquíssimas pessoas pretas tem a oportunidade de publicar um texto em um jornal tão influente como a Folha.

Diante de algumas opiniões que li dizendo que a maioria das pessoas que criticam negativamente o texto de Schwarcz o fazem com argumentos rasos e pífios, como por exemplo, “ela não é negra para falar como uma mulher negra deve se posicionar em relação ao racismo”, resolvi então construir argumentos mais coerentes e relevantes para cada parágrafo do texto original escrito pela professora universitária. A começar pelo título, que, desde já, se contrapõe ao que a autora tentar defender como um texto majoritariamente “elogioso”. Vale ressaltar que, caso o texto publicado no jornal tenha sido alterado pelo editor, sem a autorização da autora, cabe a ela se posicionar sobre isso e pedir retratação. Digo isso, porque li comentários de pessoas, talvez na tentativa de “passar pano para branco”, de que a autora poderia ser inocente em determinadas passagens do texto, como o próprio título, por exemplo.

Quem escreve um texto, sabe (ou deveria saber) como o título é um dos elementos mais importantes, para o bem ou para o mal, pelo fato de ser um atrativo para o leitor e por dar alguma ideia do que será abordado texto em sua íntegra. Questiona-se o fato de muitos acusadores de Lilia não terem lido seu artigo completo (conteúdo disponível, na internet, apenas para assinantes do jornal), o que pode ser verdade, mas isso só comprova o poder que um título pode ter, já que o título do artigo não está desvinculado ao conteúdo do texto.  O uso da palavra “erro” é inadequado linguisticamente porque, entre seus possíveis significados, tem-se “ação ou consequência de errar, de se enganar ou de se equivocar” “falta de acerto; engano, equívoco”; “ausência de competência, de habilidade, de experiência” (Dicionário Online de Português, 2020). Portanto, para haver erro seria necessário seguir um referencial do que seria acerto, um modelo a ser seguido, um padrão conjuntamente aceito, não ter competência e não ter experiência, o que não convém ao caso de um trabalho artístico, ficcional, subjetivo, que aborde a ancestralidade africana, na perspectiva de uma mulher negra nascida na diáspora.

Além disso, é extremamente perigoso e violento uma pessoa branca atribuir “erro” a uma pessoa negra, ainda mais sem fundamento, porque, em especial na sociedade brasileira, resultado de um processo violento de escravização de africanos e delineada em racismo estrutural, para quem é negro, as oportunidades são infinitamente menores em comparação a pessoas brancas e as cobranças são ainda maiores, tanto por parte dos brancos quanto dos próprios negros. Mas ela deve ter pensado, “quantos negros têm acesso à Folha de São Paulo? Ninguém vai se incomodar com isso”. Vale ressaltar que, antes de ser uma pessoa milionária, famosa e de carreira bem sucedida, Beyoncé não deixa de ser uma mulher negra, de origem humilde, inserida em uma sociedade escravocrata e racista. Ela bem sabe o que passou e ainda passa por carregar essas identidades.

Ainda sobre o título, é preciso falar que existe uma negritude “teórica” e outra “sensorial”. Lilia pode ter algum conhecimento sobre a negritude explorada nos estudos e publicações acadêmicas, mas nunca experimentará a negritude “sensorial”, sendo branca. Nunca vivenciará a experiencia que eu, como muitas outras pessoas pretas tiveram ao assistir ao filme dirigido por Beyoncé. Eu penso que a negritude pode e deve ser glamourizada, seja com estampas de oncinha, seja com qualquer outra estampa ou não. Esse termo é derivado da palavra “glamour”, um estrangeirismo que só tem conotação positiva, a meu ver, que significa “o que está na moda; charme, encantamento ou magnetismo” (Dicionário Online de Português, 2020).  Isso não limita a experiência de negritude, que pode incluir isso, mas vai além (inclusive, com aspectos negativos).

Em seguida, após o título principal do artigo, a autora afirma que Beyoncé “precisa entender” como atuar na luta antirracista, isso segundo a perspectiva de uma mulher branca que nunca sofreu nem sofrerá racismo. Penso que há várias estratégias para se combater o racismo, e acompanhando a trajetória mais recente da artista estadunidense, é possível comprovar isso. Aliás, a arte pode ter um papel fundamental nesse processo. Arte também é política. Um artista pode compor uma música, dirigir um filme, escrever um poema etc. expondo e condenando o racismo, de forma mais ou menos explícita, ou exaltando a beleza de ser negro, ou valorizando as histórias e memórias dos povos negros etc. Há inúmeras possibilidades. Beyoncé escolheu apenas uma, neste caso.

No primeiro parágrafo do artigo, a autora afirma que tudo que Beyoncé faz causa “polêmica” e “traz muito barulho”. Questiono a generalização do comentário em relação à palavra polêmica. Provavelmente, tudo que Beyoncé fez, faz e fará, especialmente no âmbito artístico, chamará a atenção do mundo, diante da imensa visibilidade e consagração que a artista conquistou ao longo de anos de carreira, mas penso que a palavra “polêmica” não é a mais adequada para qualificar a obra desta artista. A palavra “polêmica” está relacionada à “discussão”, mas seu uso recorrente aqui no Brasil está mais associado a aspectos negativos, que gera grandes controvérsias. Em seguida, ela compara a história do filme de Beyoncé com a de Hamlet, do dramaturgo inglês Shakespeare, o que mostra que seu repertório cultural está mais direcionado à cultura europeia do que às culturas africanas e afrodiaspóricas, o que não seria um problema se ela não usasse isso para fazer uma relação forçada entre ambas.

No parágrafo seguinte, Schwarcz continua expondo seu conhecimento sobre esse clássico da dramaturgia universal para desenvolver sua leitura sobre a produção audiovisual afrocentrada e contemporânea dirigida por Beyoncé. Seria anacronismo? Na verdade, ela começa comparando o texto de Shakespeare com a trama de “O rei Leão”, para depois voltar para o filme de Beyoncé (que é um outro filme). Seria enrolação, o famoso ser prolixo? Se o propósito é tecer análises críticas sobre o filme “Black is King”, por que não focar nisso, e evitar associações e referências desnecessárias? Ela prossegue com sua comparação no quarto parágrafo.

No parágrafo seguinte, finalmente a autora retoma o filme de Beyoncé, também associando sua história a de Hamlet (deve ser porque citar Hamlet em qualquer texto é “cult”), para depois comparar a animação da Disney com o álbum visual da cantora estadunidense, destacando a inversão da narrativa, com a ressignificação de Simba, o retorno à ancestralidade africana e a potência visual de “Black is King”, o que entendi como elogios à obra e do qual compartilho da opinião.

Entretanto, mais uma vez a autora exagera drasticamente em suas palavras e construção textual, ao comparar os bailarinos, atores e cantoras do filme “Black is King”, majoritariamente negros, aos animais do filme “O rei Leão” (quando escreve “Beyoncé introduz bailarinos... no lugar de animais”). Mesmo que a associação não tenha sido intencional, a sintaxe da frase nos leva a essa interpretação, ainda mais quando contextualizamos com o histórico de desumanização de pessoas negras e dos estereótipos atribuídos a elas, como animais, construídos e disseminados ao longo dos tempos em diferentes discursos.

O sétimo parágrafo se inicia com uma sucessão de palavras nada elogiosas: “loucura”, “alienação”, “dar as costas” e “traição”. Entretanto, apesar de a construção deste período parecer um tanto confusa, parece que a autora elogia o trabalho de Beyoncé por não negar o passado (de ancestralidade africana), como outros já fizeram, e reproduz uma fala da cantora justificando a necessidade de pessoas negras recontarem suas histórias.

Nos dois parágrafos seguintes a autora dedica sua análise à personagem Nala, do filme “O rei Leão”, na sua leitura, reencarnada pela cantora em “Black is King”, fundindo ser humano e animal, como se fossem uma coisa só, ou seja, essa comparação constante entre os dois filmes impedem-na de vê-los como produtos distintos, mesmo que tenham alguma mínima relação.

No décimo parágrafo, a autora afirma que o filme de Beyoncé chegou em boa hora diante da discussão, para além das mídias hegemônicas, sobre violência policial contra pessoas negras, que penso que está sempre em pauta, ou pelo menos mais do que ela aparentemente enxerga, não apenas após o episódio do assassinato de George Floyd, como dito no texto.

Já no parágrafo seguinte, Schwarcz acusa Beyoncé de reproduzir imagens estereotipadas do continente africano no filme, sem exemplificar melhor essa crítica. Que planos, cenas e sequências dos filmes ilustram esse argumento? Penso que fazer crítica de cinema, mesmo em um artigo de opinião, requer um mínimo conhecimento de linguagem audiovisual, que pode ser usado para sustentar opiniões e análises.

No último parágrafo, a autora afirma que determinados movimentos sociais, dos quais ela não faz parte, não aceitam mais o sentido “único e ocidental da história”, como se a própria historiadora não estive distante disso. Além do mais, quem disse que “Black is King” tem se colocado como verdade única e universal? Aonde ela leu essa informação para deduzir ou afirmar isso?

Algumas pessoas “precisam entender” que “Black is King” é uma obra de ficção, portanto, construída com toda liberdade criativa, mesmo com variadas referências históricas, sociais e culturais africanas e ocidentais, idealizada por uma mulher negra de ascendência africana (e não africana), inserida em uma indústria cultural pop capitalista.

É possível ser antirracista dentro deste universo, entendendo a lógica do jogo para subvertê-lo. O rompimento das estruturais político-sociais opressoras não se dá de forma imediata, como nós pretos gostaríamos, mas muito tem sido feito e não deve ser desconsiderado e/ ou desqualificado. Ainda neste mesmo parágrafo, ela afirma que os jovens (mais uma vez falando de um lugar do qual ela não faz parte) talvez não se reconheçam no que ela chama de “lado didático da história”, para qualificar algumas estratégias adotadas pela produção do filme, como o figurino “glamourizado” (de fato, ela não é uma pessoa glamourizada, aparentemente não gosta disso e vê problemas em quem gosta de ser). Como é um artigo de opinião, não dá para exigir dados estatísticos da recepção de publico do filme para confirmar ou contestar essa afirmação e sair do mero achismo.

Finalmente, no último parágrafo, depois de tecer considerações sobre a abordagem da negritude e da África, rural e urbana, tradicional e moderna, a autora conclui seu artigo, mais uma vez, ressaltando sua decepção com o novo trabalho de Beyoncé, o que leva a crer que a historiadora visivelmente demonstra grande conhecimento da obra da cantora estadunidense para fazer comparações e criar expectativas. Em seguida, Schwarcz destila sua arrogância intelectual e de lugar étnico-social ao afirmar que Beyoncé deveria “sair um pouco da sua sala de jantar e deixar a história começar outra vez”, seja lá o que foi que ela quis dizer com isso. Será que ela quis dizer que uma mulher negra não pode ser milionária, viver em uma mansão e consumir mercadorias de alto custo? Isso apaga sua trajetória e compromisso social para com os seus? Ser assim é ser alienado? Será que Beyoncé já não está fazendo história?




Lecco França é professor universitário, pesquisador, curador e crítico de cinema. Doutor em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia.

ZUM GLÄNZEN GEBOREN (FESTIVAL DO RIO 2016)

Crítica de Cinema


„Divas sind eine ernste Sache. Diva ist Diva.“ Mit diesen Worten erfasst die Transvestitin Fujika de Halliday gut, was es bedeutet, eine „Diva“ zu sein. Halliday ist eine der Protagonisten des Dokumentarfilms Divinas divas [Göttliche Diven] von Leandra Leal.

Die Schauspielerin ehrt mit ihrer Hommage eine Gruppe von Transvestiten, die mit Mut, Zielstrebigkeit und Talent ihre künstlerischen Karrieren verfolgen konnten und dabei trotz teilweise widriger Umstände wie die Zeit der Militärdiktatur besonders bedeutend waren für die brasilianische LGBT-Bewegung. Rogéria, Jane di Castro, Divina Valéria, Eloína de Leopardo, Camille K, Fujika de Halliday, Marquesa und Brigite de Búzios werden im Film zärtlich portraitiert.

Divinas divas ist nämlich hauptsächlich ein Film über Zuneigungen. Angefangen bei der Direktorin Leandra Leal, für die das Theater Rival, wo die Künstlerinnen in den 1970er Jahren ihre ersten Präsentationen hatten, seit ihrer Kindheit ein zweites Zuhause war. Viele Jahre lang war ihr Großvater der Leiter des Theaters, eines der ersten Orte in Rio, der Transvestiten seine Türen für Showdarbietungen öffnete. Nach dem Tod des Großvaters übernahm die Mutter Angela Leal, ebenfalls Schauspielerin, die Leitung des Theaters. Die geehrten Transvestiten haben ein sehr zärtliches Verhältnis nicht nur zu dem Ort, sondern auch zu Leandra. Basierend auf Aussagen der Protagonistinnen, setzt sich die Narrative des Films aus Interviews, glamourösen Performances und Proben zur Show zum 70jährigen Bestehen des Theaters zusammen.

Aber die Zuneigungen beschränken sich nicht nur auf den Ort. Die im Film erkundeten gefühlvollen Beziehungen schließen Familienangehörige, feste Freunde, künstlerische Karriere und Publikum mit ein. Leandra Leal selbst verkündet, wie sehr die Transvestiten Teil ihres Lebens waren, weswegen die Offenbarung der Zärtlichkeit im Film so natürlich klingt. Auf sehr sensible und delikate Art und gleichzeitig prägnant geht Divinas divas ebenfalls auf Vorurteile, die Transformation der Körper, die Verfolgung während der Diktatur und die Akzeptanz (oder auch nicht) durch die Familie ein. Der dominierende leichte Ton von Divinas divas schafft eine Balance zwischen Humor, Emotion und Kritik an der brasilianischen Gesellschaft.

Der Journalist und Filmkritiker aus Salvador ist Mitveranstalter der Cine-Debatte Afrika-Bahia, einer Vorführung afrikanischer Filme. Außerdem war er Organisator und Referent der afro-lateinamerikanischen Treffen, initiiert durch die Regierung Bahias und die Pedro Calmon Foundation. Hinzukommend beteiligte er sich an der Organisation von CineKanema, einem Wanderkino lusophoner afrikanischer Länder.



Lecco França é professor universitário, pesquisador, curador e crítico de cinema. Doutor em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia.

BORN TO SHINE (FESTIVAL DO RIO 2016)



“Being a diva is serious business. A diva is a diva.” This is how the transvestite Fujika de Halliday explains what it means to be a “diva”. Halliday is one of the characters in the documentary Divinas Divas (Divine Divas), by Leandra Leal. The director pays tribute to a group of courageous, determined and talented transvestites who managed to build solid careers as artists, and play an important role in furthering the LGBT cause in Brazil, even through di         cult times like the military dictatorship. Rogéria, Jane di Castro, Divina Valéria, Eloína de Leopardo, Camille K, Fujika de Halliday, Marquesa and Brigite de Búzios are endearingly presented in the film.

Divinas Divas is, after all, largely a film about endearment. Beginning with the diretor Leandra Leal herself, for whom Teatro Rival, where the performers first did shows in the 1970s, was a second home from the time she was a child. The theater, which was run by her grandfather for many years, was one of the only spaces in Rio that opened its doors to transvestite performers. After her grandfather’s death, her mother, Angela Leal, also an actor, took over the theater. The transvestites portrayed in this film had a very special relationship not only with the space, but also with Leandra. The narrative, based on interviews with the characters, features interviews, and flashy performances and rehearsals for the theater’s 70th anniversary celebration.

But the a ection is not only for the theater. The loving relationships explored in the film also involve family members, boyfriends and girlfriends, their artistic careers, and the audience. Leandra Leal herself comments on the great extent to which the transvestites were part of her world. Thus, the film is a natural expression of endearment. Divinas Divas focuses on prejudice, the transformation of the transvestites’ bodies, the persecution they faced during the dictatorship, and acceptance – or lack thereof – by their families in a sensitive and subtle yet decisive manner. Divinas Divas is overall a lighthearted film with a good balance of humor, emotion and criticism of Brazilian society.



Lecco França é professor universitário, pesquisador, curador e crítico de cinema. Doutor em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia.

DIVINAS DIVAS (2016): NASCIDAS PARA BRILHAR



Diva é uma coisa séria. Diva é diva”. Com essas palavras, a travesti Fujika de Halliday define bem o que significa ser uma “diva”. Halliday é uma das personagens do documentário Divinas Divas (2016), de Leandra Leal. A atriz presta uma homenagem a  um grupo de travestis que, com coragem, determinação e talento, conseguiu construir carreiras artísticas consolidadas, tendo sido também significativamente importantes para a causa LGBT no país, enfrentando, inclusive, épocas difíceis, como o regime militar. Rogéria, Jane di Castro, Divina Valéria, Eloína de Leopardo, Camille K, Fujika de Halliday, Marquesa e Brigite de Búzios são reveladas, no filme, pela chave do afeto.

Porque Divinas Divas é, sobretudo, um filme sobre afetos. A começar pela própria diretora, Leandra Leal, para quem o Teatro Rival, onde as artistas começaram a se apresentar na década de 1970, era uma segunda casa desde a infância. Durante muitos anos administrado por seu avô, o teatro foi um dos primeiros espaços no Rio a abrir as portas para as travestis fazerem shows. Após a morte do avô, o teatro passou a ser comandado pela sua mãe, a também atriz Angela Leal. As travestis homenageadas têm uma relação de muito carinho não só com aquele espaço mas com Leandra. Baseada em depoimentos das personagens, a narrativa se divide entre entrevistas, performances cheias de brilho e  ensaios para o show de comemoração do aniversário de 70 anos do teatro.

Mas os afetos não se resumem ao lugar. As relações afetivas exploradas no filme envolvem ainda familiares, namorados, carreira artística e público. A própria Leandra Leal declara o quanto aquelas travestis fizeram parte de seu mundo e, por isso, soa tão natural essa demonstração de carinho através do filme. De forma muito sensível e delicada e, ao mesmo tempo, contundente, Divinas Divas enfoca também o preconceito, a transformação dos corpos, a perseguição durante a ditadura e a aceitação (ou não) da família. Com um tom predominantemente leve, Divinas Divas equilibra-se entre o humor, a emoção e a crítica à sociedade brasileira.




Lecco França é professor universitário, pesquisador, curador e crítico de cinema. Doutor em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia.

EINE MODERNE LESART KLASSISCHER GESCHICHTEN ZUR VATERSCHAFT (FESTIVAL DO RIO 2016)


Anfangs scheint der Film O filho de Joseph [Der Sohn von Joseph] (2016) von Eugène Green lediglich eine weitere Geschichte eines Sohnes zu sein, der seinen Vater sucht.

In den ersten Szenen zum Beispiel gelangt die Figur Vincent (Victor Ezenfis) an ein Café namens Vater und Sohn. Auch fragt der Junge seine Mutter mehrfach, wer sein Vater sei.

Aber der Film nimmt sich letztlich vor, verschiedene Möglichkeiten der Vaterschaft zu erkunden. Wir treffen auf Vincents alleinerziehende Mutter Marie (Natacha Régnier); den Herausgeber von Büchern Oscar (Mathieu Amalric), angeblicher biologischer Vater des Jungen, der eine distanzierte Beziehung zu seinen anderen Kindern hat; und Joseph (Fabrizio Rongione), Oscars Bruder, der den Jungen im überraschendsten Moment bei sich aufnimmt.

Der grundlegende Handlungsverlauf ist eine neue Lesart biblischer Geschichten der Opferung Isaacs, dem Sohn von Abraham – die anhand von Caravaggios Gemälde, dessen Kopie an der Wand in Vincents Zimmer hängt, illustriert wird – und der Geschichte Josephs, der Marias Sohn annimmt.

Die Figuren Vincent, Oscar und Joseph repräsentieren unterschiedliche Ansichten über die Vaterschaft. Für Vincent wäre der Vater grundlegend wichtig, um ihn aus seiner momentanen „seltsamen“ Lebensphase zu befreien. Oscar weist trotz dreier legitimer Söhne die Möglichkeit einer Vaterschaft von sich. Joseph hingegen nimmt die Rolle ohne Probleme an, obwohl er vom Vater enterbt wurde. Dank Joseph zeigt sich Vincent, ein typisch rebellischer Teenager mit aggressiven Ausdrücken, kühnem Benehmen und, hauptsächlich in den Dialogen mit der Mutter, starken Sprüchen, allmählich ruhiger und weltoffener.

In verschiedenen Einstellungen blicken die Figuren direkt in die Kamera und versuchen dabei, eine Nähe mit dem Zuschauer aufzubauen. Die Dialoge sind größtenteils trocken und knapp und die beschränkte Interaktion zwischen den Figuren drückt eine physische und emotionale Distanz aus. Die Kamera fokussiert nicht selten sekundenlang Räume und Objekte, fast ohne klangliche Unterstützung. Genau diese Erzählstrategien machen O filho de Joseph, verglichen mit anderen Filmen zum selben Thema, zu einem originellen Film.

Der Journalist und Filmkritiker aus Salvador ist Mitveranstalter der Cine-Debatte Afrika-Bahia, einer Vorführung afrikanischer Filme. Außerdem war er Organisator und Referent der afro-lateinamerikanischen Treffen, initiiert durch die Regierung Bahias und die Pedro Calmon Foundation. Hinzukommend beteiligte er sich an der Organisation von CineKanema, einem Wanderkino lusophoner afrikanischer Länder.




Lecco França é professor universitário, pesquisador, curador e crítico de cinema. Doutor em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia.

O BURLESCO CINEMATOGRÁFICO E OS OBJETOS NOS FILMES CÔMICOS DE CURTA-METRAGEM DE CHARLES CHAPLIN


Crítica de Cinema

Sabe-se que Chaplin foi um dos principais representantes da comédia, gênero que começou a ser explorado no cinema já nas primeiras décadas de sua existência, com ênfase no burlesco (relativo à comédia, cômico), no intuito de entreter suas plateias, na sua maioria oriunda das classes populares e pouco escolarizadas. Os filmes produzidos pelos estúdios Keystone Pictures e Essanay, entre os anos de 1914 e 1915, que revelaram e consagraram o próprio Chaplin são ilustrativos disso. Para M. Winokur (1996, p. 104), “o foco da comédia transformadora é o corpo humano ou os objetos que o rodeiam. Todas as transformações são mudanças no mundo material do corpo do artista, nos artefatos que o cercam ou no corpo de um outro, normalmente o seu antagonista”. Isto quer dizer que o vestir-se, o maquiar-se e os objetos de cena são recorrentes artifícios propiciadores do riso. 

No caso de Chaplin, seu estilo e técnicas para fazer humor ainda hoje servem como referencial em programas televisivos, desenhos animados e filmes do gênero (cf. Chaves, Tom e Jerry etc.). Na maioria dos filmes de curta-metragem protagonizados e/ou dirigidos por Chaplin, os figurinos e caracterizações dos personagens variam com atores e atrizes usando desde roupas mais pomposas às mais simples, muitas vezes para demarcar determinada classe social. A caracterização e composição de personagens são também constantemente utilizadas para criar situações engraçadas ou, no mínimo, de estranhamento (por exemplo, excesso de bigodes e cabelos nos homens, excesso de maquiagem nas mulheres), como no filme Carlitos dentista (Laughing gas, 1914), no qual os personagens masculinos usam roupas largas e barbas mal colocadas; ou em Carlitos ciumento (A busy day, 1914), em que Chaplin aparece travestido de mulher.

Os filmes cômicos caracterizam-se tanto pela inclusão de piadas e brincadeiras com ênfase no visual (como nos filmes mudos) quanto verbais (a partir da inclusão de falas e do cinema sonoro). Assim, desde o começo produziram-se filmes com o objetivo de mostrar imagens que alegravam e causavam riso no espectador, através de cenas de perseguição, com golpes, quedas e surpresas dos personagens, mesmo sem o acompanhamento de sons. As cenas em que haviam agressões e pancadas eram desencadeadas com o apoio de objetos cênicos como martelos, tijolos, pedaços de madeira, facas, entre outros, partes do cenário (portas, escadas), além das próprias partes do corpo (braços, pernas), utilizadas, principalmente pelo personagem de Chaplin, para golpear e machucar seus antagonistas (se bem que nem sempre as agressões tinham qualquer motivo), criando, dessa forma, situações de riso.











Lecco França é professor universitário, pesquisador, curador e crítico de cinema. Doutor em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia.

MULHERES NA ESTRADA (PARTE 1): A ESTRADA DA VIDA (ITÁLIA, 1954, F. FELINI)


Crítica de Cinema

A estrada não costuma ser muito generosa com quem embarca nela, principalmente com as mulheres. Ao analisar determinadas narrativas fílmicas concebidas em épocas e países diferentes, e de diretores e estilos completamente distintos, como Curva do destino (EUA, 1945, E. Ulmer), A estrada da vida (Itália, 1954, F. Felini), Sem teto nem lei (França, 1985, Agnes Varda) pode-se constatar, em relação à trajetória e destino das personagens femininas pelo menos duas características em comum (apesar dos diferentes perfis físico e psicológico delas): uma iminente vulnerabilidade diante dos riscos que a estrada pode oferecer (muitas vezes oriundas da opressão e violência masculina) e o destino trágico diante da morte.

O primeiro perfil feminino a ser analisado, não seguindo uma ordem cronológica, é o de Gelsomina, de A estrada da vida. Este filme de Fellini insere-se no movimento neorrealista, que retratou a Itália do pós-guerra, decadente e pobre, cuja estética também está presente em outros trabalhos do diretor, como Mulheres e luzes (1950), Abismo de um sonho (1952), Os boas vidas (1953) e Noites de Cabíria (1957). A construção singular da personagem, que apresenta, ao mesmo tempo, um sorriso e uma tristeza misteriosos, aliados à ingenuidade e sinceridade marcantes e completados pela brilhante interpretação da atriz Giulietta Masina, fazem dela uma importante representante feminina da cinematografia mundial. Na história, Gelsomina, oriunda de uma família constituída apenas por mulheres que, diante da ausência masculina, acaba passando por dificuldades financeiras, é vendida pela mãe ao artista circense Zampano. 

Sem escolha, ela o acompanha, auxiliando-o nos serviços domésticos e nas apresentações e, posteriormente, apresenta-se também como palhaça. Entretanto, ela é constantemente maltratada por Zampano, homem bruto, que trata mulher como objeto. Gelsomina também não se encaixava no padrão costumeiramente esperado em uma mulher: além da falta de atrativos físicos, não sabia lavar, cozinhar, e ainda aparentava apresentar algum tipo de retardamento mental, perfil este que contrastava com o de sua irmã, Rosa, que também foi parceira de Zampano, mas que morreu, não se sabe exatamente por qual motivo.

Ofuscada pelas prometidas maravilhas de uma vida de cidade em cidade, deslumbrada pela ideia de se sentir capaz, útil, de demonstrar seu talento e ser preenchida por aplausos, Gelsomina depara-se com uma realidade de melancolia e submissão. Diante disso, pensou em fugir diversas vezes, mas a paixão que nutria por Zampano e o desejo de um dia ser tratada por ele como sua esposa, ser amada e respeitada, a impediam. Pelo contrário, ela não era respeitada, nem amada, muito menos livre. Ela só obteve um pouco mais de atenção de Zampano quando apareceu o personagem Bobo, que a deixou encantada e despertou ciúmes no “arrebentador de correntes”. Após a morte de Bobo, depois de uma briga com Zampano, Gelsomina sentiu-se ainda mais triste e desequilibrada, o que levou Zampano a abandoná-la, morrendo anos depois.













Lecco França é professor universitário, pesquisador, curador e crítico de cinema. Doutor em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia.

MULHERES NA ESTRADA (PARTE 2): CURVA DO DESTINO (1945)


Crítica de Cinema

Investigando a história do cinema clássico mundial percebe-se que em sua trajetória ele apostou predominantemente em enredos cujo ponto de vista era masculino, de tal modo que eram os protagonistas homens que conduziam a trama. A imagem da mulher “construída” pelo cinema, isto é, as imagens dominantes da mulher nos filmes também eram construídas pelo e para o olhar masculino. No período da ascensão inicial do cinema norte-americano (compreendido entre 1908 e 1918), a figura feminina apresentada era, de certo modo, limitada. Habitualmente, encontrava-se a jovem criança, a mãe, esposa e dona de casa, ou a mulher perseguida, que seria resgatada pelo herói. 

No período pós-Primeira Grande Guerra, surgiu uma nova perspectiva do papel da mulher, muito ligado ao erotismo. Nos anos 1920, o papel da mulher deixou de ser secundário, como até aí acontecia, e apareceu como figura principal de muitas obras. A partir da década de 1950, ampliou-se ainda mais representação da figura feminina nos mais diversos contextos e com variadas funções (sociais). O período da história, no contexto de guerra, em que mulheres foram encorajadas a cumprir seu “dever patriótico”, prestando serviço nas fábricas de armamentos, consequentemente tornando-se independentes econômica e sexualmente, bem como o receio de sua concorrência no mercado do trabalho, causou uma desconfiança dos homens em relação a elas, podem ter sido responsáveis pela misoginia percebida no tratamento das personagens femininas. Exemplo claro disso encontra-se o filme Curva do Destino (Detour, EUA, 1945), do diretor austríaco Edgar G. Ulmer, através da personagem Vera. Vulgar e autoritária, com traços fisionômicos que, de certo ângulo, lembram os de um abutre, ávido e feroz, ela pode ser considerada como a mulher fatal mais desprezível que já apareceu na tela nos últimos tempos.

A mulher sexualmente ativa (por ser dona de seu desejo), misteriosa (por ser pouco previsível) e independente (por não ter vínculos matrimoniais) corresponde à ideia da femme fatale. Essa mulher é adjetivada como fatal porque é uma ameaça à instituição da família e representa uma tentação que pode desvirtuar o homem, levando-o à ruína. Esse tipo de personagem foi preponderante no Cinema Noir[2], a partir da década de 1940, nos Estados Unidos, e de certo modo persiste no imaginário contemporâneo um mal disfarçado incômodo com mulheres que carregam em si esses atributos.

Com larga produção entre as décadas de 1940 e 1950, o Cinema Noir ficou conhecido por tratar a sociedade de forma niilista e crítica e, principalmente, pela fotografia em alto contraste entre o preto e branco, herança do expressionismo alemão. Utilizando a temática policial, em ambientes urbanos, o gênero normalmente combina personagens moralmente ambíguos, mulheres sedutoras, homens violentos ou corruptos. A personagem femme fatale ao se interpor na trajetória do herói, funciona como um contraponto, cujo efeito é moralizante, uma vez que no final da história o herói/homem é invariavelmente absolvido e a mulher “fatal” é condenada ao descarte, à loucura, à solidão ou à morte, entre outras punições possíveis, como acontece em Curva do destino. 

O personagem Al Roberts (interpretado por Tom Neal), músico de jazz maltrapilho que viaja pelos Estados Unidos de carona, viu sua vida se transformar num inferno depois que um motorista morre na sua frente, e ele resolve assumir a identidade do morto. Como na estrada, nem tudo sai como o esperado, para Al, além do encontro com Charles Haskell Jr., o encontro com Vera quando, num posto de gasolina, dá-lhe carona, também provoca uma reviravolta completa na sua vida, levando-o a um estado degradante, que fez com que ele cometesse uma terrível besteira.

A trama é original e intrigante, cheia de surpresas, e deixa o espectador mais do que curioso, ansioso, esperando para onde o próximo lance do enredo irá conduzi-lo. Tudo isso culmina com um final extremamente inteligente: em um motel de Los Angeles, Al mata Vera involuntariamente, estrangulando-a ao puxar o cordão do telefone que ela havia enrolado em torno do pescoço. O jeito autoritário e pragmático da personagem o tempo inteiro não permitiu a empatia do público.




Lecco França é professor universitário, pesquisador, curador e crítico de cinema. Doutor em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia.
[2] Segundo Martin Scorsese, no livro Uma viagem pessoal pelo cinema americano, a expressão film noir foi cunhada pelos críticos franceses em 1946, quando descobriram as produções de Hollywood que haviam perdido durante a ocupação alemã. Não se tratava de um gênero específico, como o filme de gângster, mas sim de um estado de espírito, cuja melhor definição está na seguinte fala extraída do filme de Ulmer: “Para qualquer lado que você vá, o destino estica a perna para lhe passar uma rasteira”.


MULHERES NA ESTRADA (PARTE 3): SEM TETO NEM LEI (1985)

Crítica de Cinema

A imagem da mulher no cinema francês teve a grande contribuição de Agnés Varda, uma das fundadoras do Nouvelle Vague[2]. Em Sem teto nem lei, a cineasta resgata um pouco do passado desse movimento estético e político e cria um filme rebelde sobre uma mulher rebelde. No filme, uma jovem andarilha Mona (Sandrine Bonnaire) morre congelada no frio do inverno francês. Sua história e principalmente seus últimos dias são contados através das pessoas que cruzaram o seu caminho. Muito além de simples feminismo, Varda levanta uma profunda reflexão sobre a solidão e a liberdade, trazendo uma personagem não convencional fugindo de si mesma. Também inova trazendo uma narrativa não linear e uma trama fragmentada e subjetiva. O passado da anônima morta é desvendado por meio dos testemunhos de quem a conheceu, cada um deles acrescentando ao relato suas impressões e sentimentos que por vezes se contradizem.

O filme é dedicado a Natalie Sarraut, conhecida pela sua passagem pelo “Novo romance francês” e escritora dos fluxos de consciência e por uma profundidade existencial da construção dos seus personagens (características que aparecem no filme de Varda). Como já dito, o filme tem uma estrutura narrativa interessante: começa com a personagem já morta e sem sabermos nada das razões de seu fim. Somente aos poucos, por informações daqueles que conviveram algum tempo com ela, fica-se sabendo o que aconteceu. 

O filme é claramente de ficção, mas nos momentos em que as pessoas falam do seu encontro com a garota de rua, a câmara nos passa a ideia de que estamos diante de um documentário onde as pessoas olham para a câmara, narram como se estivessem vendo o acontecido e logo após, aparece a cena um pouco diferente do que foi contada, geralmente de maior extensão do que a história contada. Uma marca permanente em Varda desde os tempos da Nouvelle Vague é a opção por narrar situações cotidianas e aparentemente banais de uma vida. Sabemos aos poucos a vida errante de Mona, a protagonista. Sabemos um pouco de uma moradora de rua: sua solidão, sexo por dinheiro, violência, bebida, comida ou a falta dela.

O filme não se pretende ser de tese sociológica, mas não renuncia em tudo a denúncia de uma França cruel com seus imigrantes (antecipador para a situação em que a Europa vive hoje na temática da migração) e trabalhadores em geral e do desespero do abandono. Diante de todo um “realismo cinematográfico” que lhe é próprio, temos o “frescor juvenil e rebelde” da Nouvelle Vague das origens. A personagem nos transmite uma situação de liberdade dos vagueadores e conquistadores de submundos só vistos nas obras de Kerouac ou Guinsberg. Há algo no filme que nos diz que liberdade é conquista, é projeto, é construção cotidiana individual e coletiva e, por vezes, fatal.

Assim, o perfil feminino construído no filme é daquela mulher que adota comportamentos que comumente não são para ela. Há diversos momentos em que isso é mostrado claramente nos diálogos. Mona não é a mulher mais simpática que você já viu num filme, pelo contrário. Mas ela possui um magnetismo que não permite que você desvie o olhar dela. Tudo que ela faz parece apontar em direção a sua morte, se alimentando e se higienizando precariamente, passando frio, se entupindo de álcool e fumando um cigarro atrás do outro. Ela não se ajusta ao meio nem tenta agradar ninguém; Mona é a personificação de uma liberdade nociva, na qual a falta de identidade e objetivos, aliada ao medo de se deixar envolver com outras pessoas, conduz a ela a um estado de autodestruição. Sozinha ela mergulha num estado de decadência humana sem muitos paralelos no cinema.

O cinema, ao longo da sua história, tem tentado contar histórias de mulheres que de uma maneira ou de outra marcaram o imaginário social, positiva ou negativamente. Nessa estrada, como em quase todos os filmes que seguem uma estrada, personagens aparecem e somem, pegam carona e descem. Gelsomina é uma delas, que sobe na carroceria de Zampano no início do filme, depois desce e some. O mesmo caminho é seguido por Vera e Mona. Será que a morte de todas as personagens representa o destino ou funciona como simples punição por ser mulher?




Lecco França é professor universitário, pesquisador, curador e crítico de cinema. Doutor em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia.
[2] Estilo de cinema francês dos anos 1960 que propunha um cinema mais autoral - feito pelo diretor - e caracterizado pela juventude de seus cineastas, pelos padrões diferentes dos padrões comerciais e suas temáticas “rebeldes”. As ruas, os marginais, comportamento libertário em termos de costumes conservadores, irresponsabilidade juvenil, paixão pela vida, relações trágicas, tudo isto marcou o cinema da “nova onda” francesa e influenciou toda uma geração de cineastas pelo mundo a fora.

A MODERN TAKE ON CLASSIC STORIES OF FATHERHOOD (FESTIVAL DO RIO 2016)




At first, Son of Joseph (Le Fils de Joseph, 2016), directed by Eugène Green appeared to be yet another story about a boy in search of his father. In the first scenes, for example, Vincent (played by Victor Ezenfis) comes across a café called Father and Son. At times, the boy plies his mother with questions about who his father might be.

But the film aims to explore different options for fatherhood. We have Vincent’s mother, Marie (Natacha Régnier), who is raising her son on her own; Oscar (Mathieu Amalric), an editor who is assumed to be Vincent’s biological father but who is not close with his other children; Joseph (Fabrizion Rongione), Oscar’s brother, who unexpectedly takes the boy in.

The plot is essentially an interpretation of the bible stories of the sacrifice faced by Isaac, son of Abraham (depicted in the Caravaggio painting, a reproduction of which hangs on the wall of Vincent’s room), and of Joseph, who took responsibility for raising Mary’s son.

The characters Vincent, Oscar and Joseph each represent a different perspective on fatherhood. For Vincent, a father is the one who will save him from the “strange” he is going through. Oscar denies any possibility of being a father, despite his three legitimate children. It is thanks to Joseph that Vincent, a typical rebellious teenager who behaves aggressively and speaks rashly, especially with his mother, gradually becomes calmer and more extroverted.

At several points in the film the characters look straight into the camera in an attempt to establish a closer relationship with the audience. The dialogue is frequently dry and terse, and the limited interaction between characters creates a sense of physical and emotional distance. There are many shots in which the camera spends several seconds focused on spaces and objects, in near total silence. These are the strategies used in developing the narrative make give Son of Joseph more original than others that explore the same topic.




Lecco França é professor universitário, pesquisador, curador e crítico de cinema. Doutor em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia.