Crítica de Cinema
“Estamos cansados da escuridão.
Enfrentamos a escuridão por muito tempo”. Essas duas frases, dita por uma das
personagens do filme Altas horas (Nuit Debout, 2019), coprodução
da República Democrática do Congo e da Bélgica, dirigida por Nelson Makengo,
resume bem a proposta da primeira sessão do programa Novas Áfricas, intitulada “Rebelião”.
Fazendo uma alusão ao livro Sair da grande noite: ensaio sobre a África
descolonizada, do historiador e filósofo camaronês Achille Mbembe, publicado
pela primeira vez em 2003, obra que reflete sobre os impactos do colonialismo
europeu no continente africano, os processos de libertação ao longo do século
XX e a crítica à permanência da colonialidade na contemporaneidade, o filme de
Makengo mostra a noturna Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, onde
as casas e ruas são iluminadas por milhares de lanternas portáteis de
LEDs. Isso porque as linhas de energia costumam ser cortadas justamente à
noite, então as pessoas precisam improvisar soluções para iluminar a escuridão.
Três telas separadas expõem essa difícil situação, revelando também as convulsões
políticas e batalhas entre gangues violentas de rua nesse país localizado na
África Central. Às vezes, as telas mostram a mesma imagem, às vezes outras
diferentes: uma mulher segurando um cabo grosso na mão, um vendedor de
lâmpadas, pessoas ouvindo as notícias em um rádio portátil. Ao fundo,
ouvimos o som do gerador fornecendo a preciosa energia elétrica. O filme
mostra que as noites nesta cidade também se tornam possíveis espaços de resistência,
em resposta ao abandono da população pelo governo local, cada vez mais obcecado
com seu projeto de ascensão econômica.
Além deste filme de abertura, também
compõem esta sessão Prisioneiro e carcereiro (Prisoner and jailer, 2019),
produção da Líbia, dirigida por Muhannad Lamin, Dízimos e oferendas (Tithes
and offerings, 2018), produção queniana dirigida por Tony Koros e Dia
negro (Journée noire, 2019), produção do Senegal dirigida por Yoro
Mbaye. Em Prisioneiro e carcereiro, por meio de dois personagens, um funcionário importante do
antigo regime na Líbia e uma das figuras mais simbólicas do período
pós-revolucionário, descobrimos as circunstâncias em torno de um dos eventos
mais marcantes da história moderna deste país: o Massacre da Prisão de Abu
Salim, no qual mais de mil prisioneiros políticos foram mortos em apenas
algumas horas. O filme transita entre o passado e o presente por meio desses
dois protagonistas, que trocam o papel de vítima e algoz. A maioria dos
eventos e diálogos que aparecem no filme foram retirados diretamente de
depoimentos de ex-presidiários e guardas. Já em Dízimos e oferendas,
um pastor de uma
pequena e humilde igreja cristã, influenciado por programas religiosos
estrangeiros exibidos na televisão, e deslumbrado pelo carisma que pode exercer
sobre seus fiéis, realiza falsos milagres para aumentar sua
credibilidade. Até que um dia, de forma totalmente inesperada e acidental,
um milagre acontece, possibilitando-o de alcançar mais rapidamente esse
objetivo. Dia negro, por sua vez, explora o descaso do governo local com a educação
universitária, em que dezenas de estudantes, muitos oriundos de regiões mais
distantes da capital, estão há três meses sem receber auxílio financeiro para
custear suas despesas, inclusive de alimentação. Diante deste contexto, um
grupo de universitários resolve protestar nas ruas, sendo violentamente
reprimidos pela polícia. Entre eles, o personagem Ngor, um jovem e brilhante estudante de
Direito, que, relutante no início, decidiu se aliar a seus companheiros e é morto a tiros por
policiais.
Na segunda sessão do programa,
intitulada “Música e Cinema”, a escuridão perde espaço para as luzes, aliadas a
um ritmo intenso e variadas musicalidades. A começar pelo vibrante Zumbis
(Zombies, 2019), coprodução da República Democrática do Congo e da Bélgica,
dirigido pelo músico e diretor congolês Baloji. A obra, entre outros aspectos,
reflete o contexto urbano contemporâneo de grandes cidades africanas, como
Kinshasa, capital deste país africano, que transitam entre as culturas
tradicionais e as influências das culturas modernas ocidentais. Este filme
musical, que apresenta três canções do disco 137 Avenue Kaniama, lançado
pelo artista em 2018, “Spotlight”, “Glossine (Zombie)” e “Ciel d’encre”,
explora, principalmente, a forma como o universo tecnológico móvel (em especial,
os smartphones) tem afetado e conectado as sociedades de diversos lugares do
mundo, através da internet. Do mesmo diretor e também com canções de 137 Avenida
Kaniama, integra esta mesma sessão os filmes Nunca olhe para o sol (Never
look at the sun, 2019) e A pele de Onagro – O azul da noite (Peau
de Chagrin – Bleu de nuit). “Nunca olhe para o sol” é uma expressão
recorrente que pessoas negras retintas escutam, para evitarem a exposição à luz
do sol e ficarem mais escuras ainda. Em
torno de um produto fictício de branqueamento no qual a protagonista do filme
se banha cerimoniosamente, o criativo Baloji faz uma crítica ao
clareamento de pele, frequentemente usado
por mulheres, para emular padrões de beleza eurocêntricos. O poema narrado na
trama, pela escritora e pesquisadora Dorrie Wilson, por sua vez, é uma
declaração à beleza da pele escura, com suas palavras atuando como um
contrapeso ao caso de amor químico da personagem com o branqueamento.
Já
A pele de Onagro – O azul da noite, filmado na região de Lusanga, na República
Democrática do Congo, é baseado na tradição pigmeu do casamento em que um casal
está diante de uma instalação vegetal, embalada pela melódica canção em lingala.
Esteticamente, há uma série de belíssimos planos que dialogam com a produção
contemporânea de alguns artistas africanos, a exemplo do fotógrafo senegalês Omar
Victor Diop, do artista plástico nigeriano Yinka Shonibare e da sul-africana
Mary Sibande.
Outro filme presente nesta sessão é Bablinga
(2019), produção da Burkina Faso e França, dirigido por Fabien Dao, que conta a
história de Moktar, um
imigrante burquinense residente na França, que sempre dizia que, quando
conseguisse fechar seu bar Bablinga, localizado em frente ao mar, voltaria para
Burkina Faso. A trama retrata a chegada
desse dia, seus conflitos internos e as suas dificuldades para partir. Nesse
mesmo dia, espíritos se convidam para celebrar a última noite do bar, regada a
bebidas e canções. Um toque de Kora (Um air de Kora,
2019), produção senegalesa dirigida por Angèle Diabang, encerra esta segunda
sessão. No filme, Salma, uma garota
muçulmana, sonha em ser tocadora de Kora, um instrumento musical tradicional
que, segundo as antigas convenções, não pode ser tocado por uma mulher. Entretanto,
um dia, enquanto buscava a Kora de seu pai que estava em um mosteiro, um monge
lhe deu a oportunidade de ter aulas secretamente com Manuel, um virtuoso tocador
deste instrumento. Inicialmente distantes pelas normas sociais e
religiosas, os dois aos poucos vão se aproximando e se apaixonam, o que cria um
grande conflito para ambos.
A terceira e última sessão do
programa é dedicada às mulheres africanas, seja em frente às telas, seja por
trás das câmeras. A começar pelo belíssimo Mama Bobo (2017), coprodução entre Senegal, Bélgica e França,
dirigida por Robin Andelfinger e Ibrahima Seydi. No filme, a
protagonista, uma viúva de aproximadamente 80 anos, todos os dias segue para o ponto
de ônibus da rua Gomis, em Dakar, Senegal, para encontrar o marido. Enquanto
isso, ao seu redor, uma grande obra de infraestrutura a cerca, chamando a
atenção para o crescimento urbano da capital senegalesa e os impactos negativos
dessas ações de desenvolvimento, na ótica ocidental. Um dia o ponto de ônibus é
retirado e isso afeta consideravelmente a vida de Mama Bobo. Já Além do muro
(Au delà de ce mur, 2018), produção do Marrocos, dirigida por
Aisha Jabour, duas crianças pobres conhecem uma famosa atriz libanesa que vive “do
outro lado do muro”, ou seja, em um outro contexto social. Além das diferenças
de classe, a trama também destaca outros aspectos da sociedade marroquina, como
a opressão e violência à mulher e costumes socioculturais, como o “Eid ul-Adha”, também
conhecido como Grande Festa ou Festa do Sacrifício, festival
muçulmano que sucede a realização do haje, a peregrinação a Meca.
Uma volta por
Ouaga (Ça tourne à Ouaga, 2017), produção da Burkina Faso dirigida por
Irene Tassembedo, por sua vez, explora os bastidores do último dia de filmagens do filme Uma cadeira para dois, sobre um casal
de burgueses, ambos com ambições políticas. Porém,
nada sai como planejado, uma série de conflitos ocorrem, trazendo uma reflexão bem
humorada sobre problemas que podem ocorrer em um set de cinema (baixo
orçamento, atrasos nos pagamentos dos profissionais, um diretor
desatualizado que nunca sabe o que fazer, um cinegrafista que passa o tempo
mandando mensagens de texto para seus amigos, um engenheiro de som que dorme), assim como nas relações pessoais (traição, assédio às mulheres
etc.). Para encerrar, Minha
amada coesposa (Ma coépouse bien-aimée, 2018), produção senegalesa
dirigida por Angèle Diabang. O filme conta a história de duas recém coesposas que
vivem na mesma casa e estão sozinhas. O
marido delas não está presente. Ao longo da narrativa, elas realizam suas
funções domésticas, transitam pelos mesmos espaços, fazem refeições juntas, mas
não conversam. Enquanto executam suas ações, o espectador tem conhecimento de
seus sentimentos e reflexões sobre a experiência da poligamia através da
narração de cada uma, em voz off.
Pela
primeira vez na programação da Mostra Internacional de Curtas Metragens de São
Paulo, este programa teve a sensível e cuidadosa curadoria de Claire Diao,
diretora da Sudu Connexion, uma importante distribuidora de filmes africanos e
da diáspora, com sede na França.