quinta-feira, 27 de agosto de 2020

PROGRAMAS ESPECIAIS NOVAS ÁFRICAS - 31ª. MOSTRA INTERNACIONAL DE CURTAS METRAGENS DE SÃO PAULO 2020

Crítica de Cinema

“Estamos cansados da escuridão. Enfrentamos a escuridão por muito tempo”. Essas duas frases, dita por uma das personagens do filme Altas horas (Nuit Debout, 2019), coprodução da República Democrática do Congo e da Bélgica, dirigida por Nelson Makengo, resume bem a proposta da primeira sessão do programa Novas Áfricas, intitulada “Rebelião”. Fazendo uma alusão ao livro Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada, do historiador e filósofo camaronês Achille Mbembe, publicado pela primeira vez em 2003, obra que reflete sobre os impactos do colonialismo europeu no continente africano, os processos de libertação ao longo do século XX e a crítica à permanência da colonialidade na contemporaneidade, o filme de Makengo mostra a noturna Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, onde as casas e ruas são iluminadas por milhares de lanternas portáteis de LEDs. Isso porque as linhas de energia costumam ser cortadas justamente à noite, então as pessoas precisam improvisar soluções para iluminar a escuridão. Três telas separadas expõem essa difícil situação, revelando também as convulsões políticas e batalhas entre gangues violentas de rua nesse país localizado na África Central. Às vezes, as telas mostram a mesma imagem, às vezes outras diferentes: uma mulher segurando um cabo grosso na mão, um vendedor de lâmpadas, pessoas ouvindo as notícias em um rádio portátil. Ao fundo, ouvimos o som do gerador fornecendo a preciosa energia elétrica. O filme mostra que as noites nesta cidade também se tornam possíveis espaços de resistência, em resposta ao abandono da população pelo governo local, cada vez mais obcecado com seu projeto de ascensão econômica.

Além deste filme de abertura, também compõem esta sessão Prisioneiro e carcereiro (Prisoner and jailer, 2019), produção da Líbia, dirigida por Muhannad Lamin, Dízimos e oferendas (Tithes and offerings, 2018), produção queniana dirigida por Tony Koros e Dia negro (Journée noire, 2019), produção do Senegal dirigida por Yoro Mbaye. Em Prisioneiro e carcereiro, por meio de dois personagens, um funcionário importante do antigo regime na Líbia e uma das figuras mais simbólicas do período pós-revolucionário, descobrimos as circunstâncias em torno de um dos eventos mais marcantes da história moderna deste país: o Massacre da Prisão de Abu Salim, no qual mais de mil prisioneiros políticos foram mortos em apenas algumas horas. O filme transita entre o passado e o presente por meio desses dois protagonistas, que trocam o papel de vítima e algoz. A maioria dos eventos e diálogos que aparecem no filme foram retirados diretamente de depoimentos de ex-presidiários e guardas. Já em Dízimos e oferendas, um pastor de uma pequena e humilde igreja cristã, influenciado por programas religiosos estrangeiros exibidos na televisão, e deslumbrado pelo carisma que pode exercer sobre seus fiéis, realiza falsos milagres para aumentar sua credibilidade. Até que um dia, de forma totalmente inesperada e acidental, um milagre acontece, possibilitando-o de alcançar mais rapidamente esse objetivo. Dia negro, por sua vez, explora o descaso do governo local com a educação universitária, em que dezenas de estudantes, muitos oriundos de regiões mais distantes da capital, estão há três meses sem receber auxílio financeiro para custear suas despesas, inclusive de alimentação. Diante deste contexto, um grupo de universitários resolve protestar nas ruas, sendo violentamente reprimidos pela polícia. Entre eles, o personagem Ngor, um jovem e brilhante estudante de Direito, que, relutante no início, decidiu se aliar a seus companheiros e é morto a tiros por policiais.

Na segunda sessão do programa, intitulada “Música e Cinema”, a escuridão perde espaço para as luzes, aliadas a um ritmo intenso e variadas musicalidades. A começar pelo vibrante Zumbis (Zombies, 2019), coprodução da República Democrática do Congo e da Bélgica, dirigido pelo músico e diretor congolês Baloji. A obra, entre outros aspectos, reflete o contexto urbano contemporâneo de grandes cidades africanas, como Kinshasa, capital deste país africano, que transitam entre as culturas tradicionais e as influências das culturas modernas ocidentais. Este filme musical, que apresenta três canções do disco 137 Avenue Kaniama, lançado pelo artista em 2018, “Spotlight”, “Glossine (Zombie)” e “Ciel d’encre”, explora, principalmente, a forma como o universo tecnológico móvel (em especial, os smartphones) tem afetado e conectado as sociedades de diversos lugares do mundo, através da internet. Do mesmo diretor e também com canções de 137 Avenida Kaniama, integra esta mesma sessão os filmes Nunca olhe para o sol (Never look at the sun, 2019) e A pele de Onagro – O azul da noite (Peau de Chagrin – Bleu de nuit). “Nunca olhe para o sol” é uma expressão recorrente que pessoas negras retintas escutam, para evitarem a exposição à luz do sol e ficarem mais escuras ainda. Em torno de um produto fictício de branqueamento no qual a protagonista do filme se banha cerimoniosamente, o criativo Baloji faz uma crítica ao clareamento de pele, frequentemente usado por mulheres, para emular padrões de beleza eurocêntricos. O poema narrado na trama, pela escritora e pesquisadora Dorrie Wilson, por sua vez, é uma declaração à beleza da pele escura, com suas palavras atuando como um contrapeso ao caso de amor químico da personagem com o branqueamento. A pele de Onagro – O azul da noite, filmado na região de Lusanga, na República Democrática do Congo, é baseado na tradição pigmeu do casamento em que um casal está diante de uma instalação vegetal, embalada pela melódica canção em lingala. Esteticamente, há uma série de belíssimos planos que dialogam com a produção contemporânea de alguns artistas africanos, a exemplo do fotógrafo senegalês Omar Victor Diop, do artista plástico nigeriano Yinka Shonibare e da sul-africana Mary Sibande. 

Outro filme presente nesta sessão é Bablinga (2019), produção da Burkina Faso e França, dirigido por Fabien Dao, que conta a história de Moktar, um imigrante burquinense residente na França, que sempre dizia que, quando conseguisse fechar seu bar Bablinga, localizado em frente ao mar, voltaria para Burkina Faso.  A trama retrata a chegada desse dia, seus conflitos internos e as suas dificuldades para partir. Nesse mesmo dia, espíritos se convidam para celebrar a última noite do bar, regada a bebidas e canções. Um toque de Kora (Um air de Kora, 2019), produção senegalesa dirigida por Angèle Diabang, encerra esta segunda sessão. No filme, Salma, uma garota muçulmana, sonha em ser tocadora de Kora, um instrumento musical tradicional que, segundo as antigas convenções, não pode ser tocado por uma mulher. Entretanto, um dia, enquanto buscava a Kora de seu pai que estava em um mosteiro, um monge lhe deu a oportunidade de ter aulas secretamente com Manuel, um virtuoso tocador deste instrumento. Inicialmente distantes pelas normas sociais e religiosas, os dois aos poucos vão se aproximando e se apaixonam, o que cria um grande conflito para ambos.

A terceira e última sessão do programa é dedicada às mulheres africanas, seja em frente às telas, seja por trás das câmeras. A começar pelo belíssimo Mama Bobo (2017), coprodução entre Senegal, Bélgica e França, dirigida por Robin Andelfinger e Ibrahima Seydi. No filme, a protagonista, uma viúva de aproximadamente 80 anos, todos os dias segue para o ponto de ônibus da rua Gomis, em Dakar, Senegal, para encontrar o marido. Enquanto isso, ao seu redor, uma grande obra de infraestrutura a cerca, chamando a atenção para o crescimento urbano da capital senegalesa e os impactos negativos dessas ações de desenvolvimento, na ótica ocidental. Um dia o ponto de ônibus é retirado e isso afeta consideravelmente a vida de Mama Bobo. Já Além do muro (Au delà de ce mur, 2018), produção do Marrocos, dirigida por Aisha Jabour, duas crianças pobres conhecem uma famosa atriz libanesa que vive “do outro lado do muro”, ou seja, em um outro contexto social. Além das diferenças de classe, a trama também destaca outros aspectos da sociedade marroquina, como a opressão e violência à mulher e costumes socioculturais, como o “Eid ul-Adha”, também conhecido como Grande Festa ou Festa do Sacrifício, festival muçulmano que sucede a realização do haje, a peregrinação a Meca. 

Uma volta por Ouaga (Ça tourne à Ouaga, 2017), produção da Burkina Faso dirigida por Irene Tassembedo, por sua vez, explora os bastidores do último dia de filmagens do filme Uma cadeira para dois, sobre um casal de burgueses, ambos com ambições políticas. Porém, nada sai como planejado, uma série de conflitos ocorrem, trazendo uma reflexão bem humorada sobre problemas que podem ocorrer em um set de cinema (baixo orçamento, atrasos nos pagamentos dos profissionais, um diretor desatualizado que nunca sabe o que fazer, um cinegrafista que passa o tempo mandando mensagens de texto para seus amigos, um engenheiro de som que dorme), assim como nas relações pessoais (traição, assédio às mulheres etc.). Para encerrar, Minha amada coesposa (Ma coépouse bien-aimée, 2018), produção senegalesa dirigida por Angèle Diabang. O filme conta a história de duas recém coesposas que vivem na mesma casa e estão sozinhas.  O marido delas não está presente. Ao longo da narrativa, elas realizam suas funções domésticas, transitam pelos mesmos espaços, fazem refeições juntas, mas não conversam. Enquanto executam suas ações, o espectador tem conhecimento de seus sentimentos e reflexões sobre a experiência da poligamia através da narração de cada uma, em voz off.

Pela primeira vez na programação da Mostra Internacional de Curtas Metragens de São Paulo, este programa teve a sensível e cuidadosa curadoria de Claire Diao, diretora da Sudu Connexion, uma importante distribuidora de filmes africanos e da diáspora, com sede na França.





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