Crítica de Cinema
A princípio, penso que qualquer
pessoa tem capacidade e direito para falar sobre qualquer assunto (desde que se
respeite, no mínimo, os princípios constitucionais), principalmente em
conversas informais ou nas redes sociais, que normalmente não exigem
argumentações tão bem abalizadas. Entretanto, quando se ocupa posições, cargos
ou espaços importantes e legitimados de comunicação, por exemplo, mesmo falando
ou escrevendo um texto meramente “opinativo”, penso ser necessário se cercar de
todos os cuidados (pesquisa e leitura ajudam bastante), ainda mais em um texto
escrito, que exige leituras, releituras e revisões (pelo menos eu, como
professor de Língua Portuguesa, escritor, crítico cultural e pesquisador, penso
e faço dessa maneira), com o que se vai dizer, especialmente quando não se é a
pessoa mais apropriada para falar sobre um assunto ou linguagem, por diversas
razões.
Neste caso, estou me referindo
ao artigo de opinião escrito pela professora, pesquisadora e historiadora Lilia
Moritz Schwarcz e publicado na Folha de São Paulo, no dia 2 de agosto de 2020.
No texto, intitulado “Filme de Beyoncé erra ao glamourizar negritude com
estampa de oncinha” (o título por si só já é de um mau gosto terrível, por
vários aspectos), a autora tece sua opinião sobre o recente filme dirigido por
Beyoncé, “Black is King”, lançado no dia 31 de julho de 2020, uma produção dos
estúdios Disney, que faz uma releitura da refilmagem de “O rei leão” (2019).
Tenho acompanhado a repercussão deste artigo, desde o momento em que foi
publicado, em especial nas redes sociais, com as mais diversas opiniões de
apoio e de repúdio ao texto publicado no jornal.
Assisti “Black is king” no
mesmo dia, antes desta celeuma toda, e posso dizer que tive uma experiência
maravilhosa como espectador diante do que vi e ouvi, falando como um homem
negro nascido no Brasil, mas que já dedicou e dedica parte de sua vida a
conhecer e pesquisar produções artísticas e culturais do continente africano.
Resolvi então escrever um outro texto sobre o filme, dedicando-me quase que o
dia inteiro pesquisando e escrevendo algo que considerasse honesto e justo com
a produção estadunidense, independente de fanatismo ou admiração pelo trabalho
musical da cantora. Entretanto, a ideia deste artigo aqui é utilizar do mesmo
direito de Schwarcz de expor sua opinião no espaço democrático, e aí desde já
questiono o que seria esse “espaço democrático”, isso porque, assim como eu,
pouquíssimas pessoas pretas tem a oportunidade de publicar um texto em um
jornal tão influente como a Folha.
Diante de algumas opiniões que
li dizendo que a maioria das pessoas que criticam negativamente o texto de
Schwarcz o fazem com argumentos rasos e pífios, como por exemplo, “ela não é
negra para falar como uma mulher negra deve se posicionar em relação ao
racismo”, resolvi então construir argumentos mais coerentes e relevantes para
cada parágrafo do texto original escrito pela professora universitária. A
começar pelo título, que, desde já, se contrapõe ao que a autora tentar
defender como um texto majoritariamente “elogioso”. Vale ressaltar que, caso o
texto publicado no jornal tenha sido alterado pelo editor, sem a autorização da
autora, cabe a ela se posicionar sobre isso e pedir retratação. Digo isso,
porque li comentários de pessoas, talvez na tentativa de “passar pano para
branco”, de que a autora poderia ser inocente em determinadas passagens do
texto, como o próprio título, por exemplo.
Quem escreve um texto, sabe (ou
deveria saber) como o título é um dos elementos mais importantes, para o bem ou
para o mal, pelo fato de ser um atrativo para o leitor e por dar alguma ideia
do que será abordado texto em sua íntegra. Questiona-se o fato de muitos
acusadores de Lilia não terem lido seu artigo completo (conteúdo disponível, na
internet, apenas para assinantes do jornal), o que pode ser verdade, mas isso
só comprova o poder que um título pode ter, já que o título do artigo não está
desvinculado ao conteúdo do texto. O uso
da palavra “erro” é inadequado linguisticamente porque, entre seus possíveis
significados, tem-se “ação ou consequência de errar, de se enganar ou de se
equivocar” “falta de acerto; engano, equívoco”; “ausência de competência, de
habilidade, de experiência” (Dicionário Online de Português, 2020). Portanto,
para haver erro seria necessário seguir um referencial do que seria acerto, um
modelo a ser seguido, um padrão conjuntamente aceito, não ter competência e não
ter experiência, o que não convém ao caso de um trabalho artístico, ficcional,
subjetivo, que aborde a ancestralidade africana, na perspectiva de uma mulher
negra nascida na diáspora.
Além disso, é extremamente
perigoso e violento uma pessoa branca atribuir “erro” a uma pessoa negra, ainda
mais sem fundamento, porque, em especial na sociedade brasileira, resultado de
um processo violento de escravização de africanos e delineada em racismo
estrutural, para quem é negro, as oportunidades são infinitamente menores em
comparação a pessoas brancas e as cobranças são ainda maiores, tanto por parte
dos brancos quanto dos próprios negros. Mas ela deve ter pensado, “quantos
negros têm acesso à Folha de São Paulo? Ninguém vai se incomodar com isso”.
Vale ressaltar que, antes de ser uma pessoa milionária, famosa e de carreira
bem sucedida, Beyoncé não deixa de ser uma mulher negra, de origem humilde,
inserida em uma sociedade escravocrata e racista. Ela bem sabe o que passou e
ainda passa por carregar essas identidades.
Ainda sobre o título, é
preciso falar que existe uma negritude “teórica” e outra “sensorial”. Lilia
pode ter algum conhecimento sobre a negritude explorada nos estudos e
publicações acadêmicas, mas nunca experimentará a negritude “sensorial”, sendo
branca. Nunca vivenciará a experiencia que eu, como muitas outras pessoas
pretas tiveram ao assistir ao filme dirigido por Beyoncé. Eu penso que a
negritude pode e deve ser glamourizada, seja com estampas de oncinha, seja com
qualquer outra estampa ou não. Esse termo é derivado da palavra “glamour”, um
estrangeirismo que só tem conotação positiva, a meu ver, que significa “o que está na
moda; charme, encantamento ou magnetismo” (Dicionário Online de
Português, 2020). Isso não
limita a experiência de negritude, que pode incluir isso, mas vai além
(inclusive, com aspectos negativos).
Em seguida, após o título
principal do artigo, a autora afirma que Beyoncé “precisa entender” como atuar
na luta antirracista, isso segundo a perspectiva de uma mulher branca que nunca
sofreu nem sofrerá racismo. Penso que há várias estratégias para se combater o
racismo, e acompanhando a trajetória mais recente da artista estadunidense, é
possível comprovar isso. Aliás, a arte pode ter um papel fundamental nesse
processo. Arte também é política. Um artista pode compor uma música, dirigir um
filme, escrever um poema etc. expondo e condenando o racismo, de forma mais ou
menos explícita, ou exaltando a beleza de ser negro, ou valorizando as
histórias e memórias dos povos negros etc. Há inúmeras possibilidades. Beyoncé
escolheu apenas uma, neste caso.
No primeiro parágrafo do
artigo, a autora afirma que tudo que Beyoncé faz causa “polêmica” e “traz muito
barulho”. Questiono a generalização do comentário em relação à palavra
polêmica. Provavelmente, tudo que Beyoncé fez, faz e fará, especialmente no
âmbito artístico, chamará a atenção do mundo, diante da imensa visibilidade e
consagração que a artista conquistou ao longo de anos de carreira, mas penso
que a palavra “polêmica” não é a mais adequada para qualificar a obra desta
artista. A palavra “polêmica” está relacionada à “discussão”, mas seu uso
recorrente aqui no Brasil está mais associado a aspectos negativos, que gera
grandes controvérsias. Em seguida, ela compara a história do filme de Beyoncé
com a de Hamlet, do dramaturgo inglês Shakespeare, o que mostra que seu
repertório cultural está mais direcionado à cultura europeia do que às culturas
africanas e afrodiaspóricas, o que não seria um problema se ela não usasse isso
para fazer uma relação forçada entre ambas.
No parágrafo seguinte, Schwarcz
continua expondo seu conhecimento sobre esse clássico da dramaturgia universal
para desenvolver sua leitura sobre a produção audiovisual afrocentrada e
contemporânea dirigida por Beyoncé. Seria anacronismo? Na verdade, ela começa
comparando o texto de Shakespeare com a trama de “O rei Leão”, para depois
voltar para o filme de Beyoncé (que é um outro filme). Seria enrolação, o
famoso ser prolixo? Se o propósito é tecer análises críticas sobre o filme
“Black is King”, por que não focar nisso, e evitar associações e referências
desnecessárias? Ela prossegue com sua comparação no quarto parágrafo.
No parágrafo seguinte,
finalmente a autora retoma o filme de Beyoncé, também associando sua história a
de Hamlet (deve ser porque citar Hamlet em qualquer texto é “cult”), para
depois comparar a animação da Disney com o álbum visual da cantora
estadunidense, destacando a inversão da narrativa, com a ressignificação de
Simba, o retorno à ancestralidade africana e a potência visual de “Black is King”, o que entendi como elogios à obra e do qual compartilho da opinião.
Entretanto, mais uma vez a
autora exagera drasticamente em suas palavras e construção textual, ao comparar
os bailarinos, atores e cantoras do filme “Black is King”, majoritariamente
negros, aos animais do filme “O rei Leão” (quando escreve “Beyoncé introduz
bailarinos... no lugar de animais”). Mesmo que a associação não tenha sido
intencional, a sintaxe da frase nos leva a essa interpretação, ainda mais
quando contextualizamos com o histórico de desumanização de pessoas negras e
dos estereótipos atribuídos a elas, como animais, construídos e disseminados ao
longo dos tempos em diferentes discursos.
O sétimo parágrafo se inicia
com uma sucessão de palavras nada elogiosas: “loucura”, “alienação”, “dar as
costas” e “traição”. Entretanto, apesar de a construção deste período parecer
um tanto confusa, parece que a autora elogia o trabalho de Beyoncé por não
negar o passado (de ancestralidade africana), como outros já fizeram, e
reproduz uma fala da cantora justificando a necessidade de pessoas negras
recontarem suas histórias.
Nos dois parágrafos seguintes a
autora dedica sua análise à personagem Nala, do filme “O rei Leão”, na sua
leitura, reencarnada pela cantora em “Black is King”, fundindo ser humano e
animal, como se fossem uma coisa só, ou seja, essa comparação constante entre
os dois filmes impedem-na de vê-los como produtos distintos, mesmo que tenham
alguma mínima relação.
No décimo parágrafo, a autora
afirma que o filme de Beyoncé chegou em boa hora diante da discussão, para além
das mídias hegemônicas, sobre violência policial contra pessoas negras, que
penso que está sempre em pauta, ou pelo menos mais do que ela aparentemente
enxerga, não apenas após o episódio do assassinato de George Floyd, como dito
no texto.
Já no parágrafo seguinte,
Schwarcz acusa Beyoncé de reproduzir imagens estereotipadas do continente
africano no filme, sem exemplificar melhor essa crítica. Que planos, cenas e
sequências dos filmes ilustram esse argumento? Penso que fazer crítica de
cinema, mesmo em um artigo de opinião, requer um mínimo conhecimento de
linguagem audiovisual, que pode ser usado para sustentar opiniões e análises.
No último parágrafo, a autora
afirma que determinados movimentos sociais, dos quais ela não faz parte, não
aceitam mais o sentido “único e ocidental da história”, como se a própria
historiadora não estive distante disso. Além do mais, quem disse que “Black is King”
tem se colocado como verdade única e universal? Aonde ela leu essa informação
para deduzir ou afirmar isso?
Algumas pessoas “precisam
entender” que “Black is King” é uma obra de ficção, portanto, construída com
toda liberdade criativa, mesmo com variadas referências históricas, sociais e
culturais africanas e ocidentais, idealizada por uma mulher negra de
ascendência africana (e não africana), inserida em uma indústria cultural pop
capitalista.
É possível ser antirracista
dentro deste universo, entendendo a lógica do jogo para subvertê-lo. O
rompimento das estruturais político-sociais opressoras não se dá de forma
imediata, como nós pretos gostaríamos, mas muito tem sido feito e não deve ser
desconsiderado e/ ou desqualificado. Ainda neste mesmo parágrafo, ela afirma que
os jovens (mais uma vez falando de um lugar do qual ela não faz parte) talvez
não se reconheçam no que ela chama de “lado didático da história”, para
qualificar algumas estratégias adotadas pela produção do filme, como o figurino
“glamourizado” (de fato, ela não é uma pessoa glamourizada, aparentemente não
gosta disso e vê problemas em quem gosta de ser). Como é um artigo de opinião,
não dá para exigir dados estatísticos da recepção de publico do filme para
confirmar ou contestar essa afirmação e sair do mero achismo.
Finalmente, no último
parágrafo, depois de tecer considerações sobre a abordagem da negritude e da África,
rural e urbana, tradicional e moderna, a autora conclui seu artigo, mais uma
vez, ressaltando sua decepção com o novo trabalho de Beyoncé, o que leva a crer
que a historiadora visivelmente demonstra grande conhecimento da obra da
cantora estadunidense para fazer comparações e criar expectativas. Em seguida,
Schwarcz destila sua arrogância intelectual e de lugar étnico-social ao afirmar
que Beyoncé deveria “sair um pouco da sua sala de jantar e deixar a história
começar outra vez”, seja lá o que foi que ela quis dizer com isso. Será que ela
quis dizer que uma mulher negra não pode ser milionária, viver em uma mansão e
consumir mercadorias de alto custo? Isso apaga sua trajetória e compromisso
social para com os seus? Ser assim é ser alienado? Será que Beyoncé já não está
fazendo história?
Lecco França é professor
universitário, pesquisador, curador e crítico de cinema. Doutor em Letras pelo
Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da
Bahia.
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