segunda-feira, 3 de agosto de 2020

ARTIGO-RESPOSTA AO TEXTO “FILME DE BEYONCÉ ERRA AO GLAMOURIZAR NEGRITUDE COM ESTAMPA DE ONCINHA”, DE LILIA MORITZ SCHWARCZ


Crítica de Cinema

A princípio, penso que qualquer pessoa tem capacidade e direito para falar sobre qualquer assunto (desde que se respeite, no mínimo, os princípios constitucionais), principalmente em conversas informais ou nas redes sociais, que normalmente não exigem argumentações tão bem abalizadas. Entretanto, quando se ocupa posições, cargos ou espaços importantes e legitimados de comunicação, por exemplo, mesmo falando ou escrevendo um texto meramente “opinativo”, penso ser necessário se cercar de todos os cuidados (pesquisa e leitura ajudam bastante), ainda mais em um texto escrito, que exige leituras, releituras e revisões (pelo menos eu, como professor de Língua Portuguesa, escritor, crítico cultural e pesquisador, penso e faço dessa maneira), com o que se vai dizer, especialmente quando não se é a pessoa mais apropriada para falar sobre um assunto ou linguagem, por diversas razões.

Neste caso, estou me referindo ao artigo de opinião escrito pela professora, pesquisadora e historiadora Lilia Moritz Schwarcz e publicado na Folha de São Paulo, no dia 2 de agosto de 2020. No texto, intitulado “Filme de Beyoncé erra ao glamourizar negritude com estampa de oncinha” (o título por si só já é de um mau gosto terrível, por vários aspectos), a autora tece sua opinião sobre o recente filme dirigido por Beyoncé, “Black is King”, lançado no dia 31 de julho de 2020, uma produção dos estúdios Disney, que faz uma releitura da refilmagem de “O rei leão” (2019). Tenho acompanhado a repercussão deste artigo, desde o momento em que foi publicado, em especial nas redes sociais, com as mais diversas opiniões de apoio e de repúdio ao texto publicado no jornal.

Assisti “Black is king” no mesmo dia, antes desta celeuma toda, e posso dizer que tive uma experiência maravilhosa como espectador diante do que vi e ouvi, falando como um homem negro nascido no Brasil, mas que já dedicou e dedica parte de sua vida a conhecer e pesquisar produções artísticas e culturais do continente africano. Resolvi então escrever um outro texto sobre o filme, dedicando-me quase que o dia inteiro pesquisando e escrevendo algo que considerasse honesto e justo com a produção estadunidense, independente de fanatismo ou admiração pelo trabalho musical da cantora. Entretanto, a ideia deste artigo aqui é utilizar do mesmo direito de Schwarcz de expor sua opinião no espaço democrático, e aí desde já questiono o que seria esse “espaço democrático”, isso porque, assim como eu, pouquíssimas pessoas pretas tem a oportunidade de publicar um texto em um jornal tão influente como a Folha.

Diante de algumas opiniões que li dizendo que a maioria das pessoas que criticam negativamente o texto de Schwarcz o fazem com argumentos rasos e pífios, como por exemplo, “ela não é negra para falar como uma mulher negra deve se posicionar em relação ao racismo”, resolvi então construir argumentos mais coerentes e relevantes para cada parágrafo do texto original escrito pela professora universitária. A começar pelo título, que, desde já, se contrapõe ao que a autora tentar defender como um texto majoritariamente “elogioso”. Vale ressaltar que, caso o texto publicado no jornal tenha sido alterado pelo editor, sem a autorização da autora, cabe a ela se posicionar sobre isso e pedir retratação. Digo isso, porque li comentários de pessoas, talvez na tentativa de “passar pano para branco”, de que a autora poderia ser inocente em determinadas passagens do texto, como o próprio título, por exemplo.

Quem escreve um texto, sabe (ou deveria saber) como o título é um dos elementos mais importantes, para o bem ou para o mal, pelo fato de ser um atrativo para o leitor e por dar alguma ideia do que será abordado texto em sua íntegra. Questiona-se o fato de muitos acusadores de Lilia não terem lido seu artigo completo (conteúdo disponível, na internet, apenas para assinantes do jornal), o que pode ser verdade, mas isso só comprova o poder que um título pode ter, já que o título do artigo não está desvinculado ao conteúdo do texto.  O uso da palavra “erro” é inadequado linguisticamente porque, entre seus possíveis significados, tem-se “ação ou consequência de errar, de se enganar ou de se equivocar” “falta de acerto; engano, equívoco”; “ausência de competência, de habilidade, de experiência” (Dicionário Online de Português, 2020). Portanto, para haver erro seria necessário seguir um referencial do que seria acerto, um modelo a ser seguido, um padrão conjuntamente aceito, não ter competência e não ter experiência, o que não convém ao caso de um trabalho artístico, ficcional, subjetivo, que aborde a ancestralidade africana, na perspectiva de uma mulher negra nascida na diáspora.

Além disso, é extremamente perigoso e violento uma pessoa branca atribuir “erro” a uma pessoa negra, ainda mais sem fundamento, porque, em especial na sociedade brasileira, resultado de um processo violento de escravização de africanos e delineada em racismo estrutural, para quem é negro, as oportunidades são infinitamente menores em comparação a pessoas brancas e as cobranças são ainda maiores, tanto por parte dos brancos quanto dos próprios negros. Mas ela deve ter pensado, “quantos negros têm acesso à Folha de São Paulo? Ninguém vai se incomodar com isso”. Vale ressaltar que, antes de ser uma pessoa milionária, famosa e de carreira bem sucedida, Beyoncé não deixa de ser uma mulher negra, de origem humilde, inserida em uma sociedade escravocrata e racista. Ela bem sabe o que passou e ainda passa por carregar essas identidades.

Ainda sobre o título, é preciso falar que existe uma negritude “teórica” e outra “sensorial”. Lilia pode ter algum conhecimento sobre a negritude explorada nos estudos e publicações acadêmicas, mas nunca experimentará a negritude “sensorial”, sendo branca. Nunca vivenciará a experiencia que eu, como muitas outras pessoas pretas tiveram ao assistir ao filme dirigido por Beyoncé. Eu penso que a negritude pode e deve ser glamourizada, seja com estampas de oncinha, seja com qualquer outra estampa ou não. Esse termo é derivado da palavra “glamour”, um estrangeirismo que só tem conotação positiva, a meu ver, que significa “o que está na moda; charme, encantamento ou magnetismo” (Dicionário Online de Português, 2020).  Isso não limita a experiência de negritude, que pode incluir isso, mas vai além (inclusive, com aspectos negativos).

Em seguida, após o título principal do artigo, a autora afirma que Beyoncé “precisa entender” como atuar na luta antirracista, isso segundo a perspectiva de uma mulher branca que nunca sofreu nem sofrerá racismo. Penso que há várias estratégias para se combater o racismo, e acompanhando a trajetória mais recente da artista estadunidense, é possível comprovar isso. Aliás, a arte pode ter um papel fundamental nesse processo. Arte também é política. Um artista pode compor uma música, dirigir um filme, escrever um poema etc. expondo e condenando o racismo, de forma mais ou menos explícita, ou exaltando a beleza de ser negro, ou valorizando as histórias e memórias dos povos negros etc. Há inúmeras possibilidades. Beyoncé escolheu apenas uma, neste caso.

No primeiro parágrafo do artigo, a autora afirma que tudo que Beyoncé faz causa “polêmica” e “traz muito barulho”. Questiono a generalização do comentário em relação à palavra polêmica. Provavelmente, tudo que Beyoncé fez, faz e fará, especialmente no âmbito artístico, chamará a atenção do mundo, diante da imensa visibilidade e consagração que a artista conquistou ao longo de anos de carreira, mas penso que a palavra “polêmica” não é a mais adequada para qualificar a obra desta artista. A palavra “polêmica” está relacionada à “discussão”, mas seu uso recorrente aqui no Brasil está mais associado a aspectos negativos, que gera grandes controvérsias. Em seguida, ela compara a história do filme de Beyoncé com a de Hamlet, do dramaturgo inglês Shakespeare, o que mostra que seu repertório cultural está mais direcionado à cultura europeia do que às culturas africanas e afrodiaspóricas, o que não seria um problema se ela não usasse isso para fazer uma relação forçada entre ambas.

No parágrafo seguinte, Schwarcz continua expondo seu conhecimento sobre esse clássico da dramaturgia universal para desenvolver sua leitura sobre a produção audiovisual afrocentrada e contemporânea dirigida por Beyoncé. Seria anacronismo? Na verdade, ela começa comparando o texto de Shakespeare com a trama de “O rei Leão”, para depois voltar para o filme de Beyoncé (que é um outro filme). Seria enrolação, o famoso ser prolixo? Se o propósito é tecer análises críticas sobre o filme “Black is King”, por que não focar nisso, e evitar associações e referências desnecessárias? Ela prossegue com sua comparação no quarto parágrafo.

No parágrafo seguinte, finalmente a autora retoma o filme de Beyoncé, também associando sua história a de Hamlet (deve ser porque citar Hamlet em qualquer texto é “cult”), para depois comparar a animação da Disney com o álbum visual da cantora estadunidense, destacando a inversão da narrativa, com a ressignificação de Simba, o retorno à ancestralidade africana e a potência visual de “Black is King”, o que entendi como elogios à obra e do qual compartilho da opinião.

Entretanto, mais uma vez a autora exagera drasticamente em suas palavras e construção textual, ao comparar os bailarinos, atores e cantoras do filme “Black is King”, majoritariamente negros, aos animais do filme “O rei Leão” (quando escreve “Beyoncé introduz bailarinos... no lugar de animais”). Mesmo que a associação não tenha sido intencional, a sintaxe da frase nos leva a essa interpretação, ainda mais quando contextualizamos com o histórico de desumanização de pessoas negras e dos estereótipos atribuídos a elas, como animais, construídos e disseminados ao longo dos tempos em diferentes discursos.

O sétimo parágrafo se inicia com uma sucessão de palavras nada elogiosas: “loucura”, “alienação”, “dar as costas” e “traição”. Entretanto, apesar de a construção deste período parecer um tanto confusa, parece que a autora elogia o trabalho de Beyoncé por não negar o passado (de ancestralidade africana), como outros já fizeram, e reproduz uma fala da cantora justificando a necessidade de pessoas negras recontarem suas histórias.

Nos dois parágrafos seguintes a autora dedica sua análise à personagem Nala, do filme “O rei Leão”, na sua leitura, reencarnada pela cantora em “Black is King”, fundindo ser humano e animal, como se fossem uma coisa só, ou seja, essa comparação constante entre os dois filmes impedem-na de vê-los como produtos distintos, mesmo que tenham alguma mínima relação.

No décimo parágrafo, a autora afirma que o filme de Beyoncé chegou em boa hora diante da discussão, para além das mídias hegemônicas, sobre violência policial contra pessoas negras, que penso que está sempre em pauta, ou pelo menos mais do que ela aparentemente enxerga, não apenas após o episódio do assassinato de George Floyd, como dito no texto.

Já no parágrafo seguinte, Schwarcz acusa Beyoncé de reproduzir imagens estereotipadas do continente africano no filme, sem exemplificar melhor essa crítica. Que planos, cenas e sequências dos filmes ilustram esse argumento? Penso que fazer crítica de cinema, mesmo em um artigo de opinião, requer um mínimo conhecimento de linguagem audiovisual, que pode ser usado para sustentar opiniões e análises.

No último parágrafo, a autora afirma que determinados movimentos sociais, dos quais ela não faz parte, não aceitam mais o sentido “único e ocidental da história”, como se a própria historiadora não estive distante disso. Além do mais, quem disse que “Black is King” tem se colocado como verdade única e universal? Aonde ela leu essa informação para deduzir ou afirmar isso?

Algumas pessoas “precisam entender” que “Black is King” é uma obra de ficção, portanto, construída com toda liberdade criativa, mesmo com variadas referências históricas, sociais e culturais africanas e ocidentais, idealizada por uma mulher negra de ascendência africana (e não africana), inserida em uma indústria cultural pop capitalista.

É possível ser antirracista dentro deste universo, entendendo a lógica do jogo para subvertê-lo. O rompimento das estruturais político-sociais opressoras não se dá de forma imediata, como nós pretos gostaríamos, mas muito tem sido feito e não deve ser desconsiderado e/ ou desqualificado. Ainda neste mesmo parágrafo, ela afirma que os jovens (mais uma vez falando de um lugar do qual ela não faz parte) talvez não se reconheçam no que ela chama de “lado didático da história”, para qualificar algumas estratégias adotadas pela produção do filme, como o figurino “glamourizado” (de fato, ela não é uma pessoa glamourizada, aparentemente não gosta disso e vê problemas em quem gosta de ser). Como é um artigo de opinião, não dá para exigir dados estatísticos da recepção de publico do filme para confirmar ou contestar essa afirmação e sair do mero achismo.

Finalmente, no último parágrafo, depois de tecer considerações sobre a abordagem da negritude e da África, rural e urbana, tradicional e moderna, a autora conclui seu artigo, mais uma vez, ressaltando sua decepção com o novo trabalho de Beyoncé, o que leva a crer que a historiadora visivelmente demonstra grande conhecimento da obra da cantora estadunidense para fazer comparações e criar expectativas. Em seguida, Schwarcz destila sua arrogância intelectual e de lugar étnico-social ao afirmar que Beyoncé deveria “sair um pouco da sua sala de jantar e deixar a história começar outra vez”, seja lá o que foi que ela quis dizer com isso. Será que ela quis dizer que uma mulher negra não pode ser milionária, viver em uma mansão e consumir mercadorias de alto custo? Isso apaga sua trajetória e compromisso social para com os seus? Ser assim é ser alienado? Será que Beyoncé já não está fazendo história?




Lecco França é professor universitário, pesquisador, curador e crítico de cinema. Doutor em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia.

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