segunda-feira, 3 de agosto de 2020

MULHERES NA ESTRADA (PARTE 1): A ESTRADA DA VIDA (ITÁLIA, 1954, F. FELINI)


Crítica de Cinema

A estrada não costuma ser muito generosa com quem embarca nela, principalmente com as mulheres. Ao analisar determinadas narrativas fílmicas concebidas em épocas e países diferentes, e de diretores e estilos completamente distintos, como Curva do destino (EUA, 1945, E. Ulmer), A estrada da vida (Itália, 1954, F. Felini), Sem teto nem lei (França, 1985, Agnes Varda) pode-se constatar, em relação à trajetória e destino das personagens femininas pelo menos duas características em comum (apesar dos diferentes perfis físico e psicológico delas): uma iminente vulnerabilidade diante dos riscos que a estrada pode oferecer (muitas vezes oriundas da opressão e violência masculina) e o destino trágico diante da morte.

O primeiro perfil feminino a ser analisado, não seguindo uma ordem cronológica, é o de Gelsomina, de A estrada da vida. Este filme de Fellini insere-se no movimento neorrealista, que retratou a Itália do pós-guerra, decadente e pobre, cuja estética também está presente em outros trabalhos do diretor, como Mulheres e luzes (1950), Abismo de um sonho (1952), Os boas vidas (1953) e Noites de Cabíria (1957). A construção singular da personagem, que apresenta, ao mesmo tempo, um sorriso e uma tristeza misteriosos, aliados à ingenuidade e sinceridade marcantes e completados pela brilhante interpretação da atriz Giulietta Masina, fazem dela uma importante representante feminina da cinematografia mundial. Na história, Gelsomina, oriunda de uma família constituída apenas por mulheres que, diante da ausência masculina, acaba passando por dificuldades financeiras, é vendida pela mãe ao artista circense Zampano. 

Sem escolha, ela o acompanha, auxiliando-o nos serviços domésticos e nas apresentações e, posteriormente, apresenta-se também como palhaça. Entretanto, ela é constantemente maltratada por Zampano, homem bruto, que trata mulher como objeto. Gelsomina também não se encaixava no padrão costumeiramente esperado em uma mulher: além da falta de atrativos físicos, não sabia lavar, cozinhar, e ainda aparentava apresentar algum tipo de retardamento mental, perfil este que contrastava com o de sua irmã, Rosa, que também foi parceira de Zampano, mas que morreu, não se sabe exatamente por qual motivo.

Ofuscada pelas prometidas maravilhas de uma vida de cidade em cidade, deslumbrada pela ideia de se sentir capaz, útil, de demonstrar seu talento e ser preenchida por aplausos, Gelsomina depara-se com uma realidade de melancolia e submissão. Diante disso, pensou em fugir diversas vezes, mas a paixão que nutria por Zampano e o desejo de um dia ser tratada por ele como sua esposa, ser amada e respeitada, a impediam. Pelo contrário, ela não era respeitada, nem amada, muito menos livre. Ela só obteve um pouco mais de atenção de Zampano quando apareceu o personagem Bobo, que a deixou encantada e despertou ciúmes no “arrebentador de correntes”. Após a morte de Bobo, depois de uma briga com Zampano, Gelsomina sentiu-se ainda mais triste e desequilibrada, o que levou Zampano a abandoná-la, morrendo anos depois.













Lecco França é professor universitário, pesquisador, curador e crítico de cinema. Doutor em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia.

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