segunda-feira, 3 de agosto de 2020

MULHERES NA ESTRADA (PARTE 3): SEM TETO NEM LEI (1985)

Crítica de Cinema

A imagem da mulher no cinema francês teve a grande contribuição de Agnés Varda, uma das fundadoras do Nouvelle Vague[2]. Em Sem teto nem lei, a cineasta resgata um pouco do passado desse movimento estético e político e cria um filme rebelde sobre uma mulher rebelde. No filme, uma jovem andarilha Mona (Sandrine Bonnaire) morre congelada no frio do inverno francês. Sua história e principalmente seus últimos dias são contados através das pessoas que cruzaram o seu caminho. Muito além de simples feminismo, Varda levanta uma profunda reflexão sobre a solidão e a liberdade, trazendo uma personagem não convencional fugindo de si mesma. Também inova trazendo uma narrativa não linear e uma trama fragmentada e subjetiva. O passado da anônima morta é desvendado por meio dos testemunhos de quem a conheceu, cada um deles acrescentando ao relato suas impressões e sentimentos que por vezes se contradizem.

O filme é dedicado a Natalie Sarraut, conhecida pela sua passagem pelo “Novo romance francês” e escritora dos fluxos de consciência e por uma profundidade existencial da construção dos seus personagens (características que aparecem no filme de Varda). Como já dito, o filme tem uma estrutura narrativa interessante: começa com a personagem já morta e sem sabermos nada das razões de seu fim. Somente aos poucos, por informações daqueles que conviveram algum tempo com ela, fica-se sabendo o que aconteceu. 

O filme é claramente de ficção, mas nos momentos em que as pessoas falam do seu encontro com a garota de rua, a câmara nos passa a ideia de que estamos diante de um documentário onde as pessoas olham para a câmara, narram como se estivessem vendo o acontecido e logo após, aparece a cena um pouco diferente do que foi contada, geralmente de maior extensão do que a história contada. Uma marca permanente em Varda desde os tempos da Nouvelle Vague é a opção por narrar situações cotidianas e aparentemente banais de uma vida. Sabemos aos poucos a vida errante de Mona, a protagonista. Sabemos um pouco de uma moradora de rua: sua solidão, sexo por dinheiro, violência, bebida, comida ou a falta dela.

O filme não se pretende ser de tese sociológica, mas não renuncia em tudo a denúncia de uma França cruel com seus imigrantes (antecipador para a situação em que a Europa vive hoje na temática da migração) e trabalhadores em geral e do desespero do abandono. Diante de todo um “realismo cinematográfico” que lhe é próprio, temos o “frescor juvenil e rebelde” da Nouvelle Vague das origens. A personagem nos transmite uma situação de liberdade dos vagueadores e conquistadores de submundos só vistos nas obras de Kerouac ou Guinsberg. Há algo no filme que nos diz que liberdade é conquista, é projeto, é construção cotidiana individual e coletiva e, por vezes, fatal.

Assim, o perfil feminino construído no filme é daquela mulher que adota comportamentos que comumente não são para ela. Há diversos momentos em que isso é mostrado claramente nos diálogos. Mona não é a mulher mais simpática que você já viu num filme, pelo contrário. Mas ela possui um magnetismo que não permite que você desvie o olhar dela. Tudo que ela faz parece apontar em direção a sua morte, se alimentando e se higienizando precariamente, passando frio, se entupindo de álcool e fumando um cigarro atrás do outro. Ela não se ajusta ao meio nem tenta agradar ninguém; Mona é a personificação de uma liberdade nociva, na qual a falta de identidade e objetivos, aliada ao medo de se deixar envolver com outras pessoas, conduz a ela a um estado de autodestruição. Sozinha ela mergulha num estado de decadência humana sem muitos paralelos no cinema.

O cinema, ao longo da sua história, tem tentado contar histórias de mulheres que de uma maneira ou de outra marcaram o imaginário social, positiva ou negativamente. Nessa estrada, como em quase todos os filmes que seguem uma estrada, personagens aparecem e somem, pegam carona e descem. Gelsomina é uma delas, que sobe na carroceria de Zampano no início do filme, depois desce e some. O mesmo caminho é seguido por Vera e Mona. Será que a morte de todas as personagens representa o destino ou funciona como simples punição por ser mulher?




Lecco França é professor universitário, pesquisador, curador e crítico de cinema. Doutor em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia.
[2] Estilo de cinema francês dos anos 1960 que propunha um cinema mais autoral - feito pelo diretor - e caracterizado pela juventude de seus cineastas, pelos padrões diferentes dos padrões comerciais e suas temáticas “rebeldes”. As ruas, os marginais, comportamento libertário em termos de costumes conservadores, irresponsabilidade juvenil, paixão pela vida, relações trágicas, tudo isto marcou o cinema da “nova onda” francesa e influenciou toda uma geração de cineastas pelo mundo a fora.

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