segunda-feira, 3 de agosto de 2020

A PATERNIDADE REVISITADA EM PAISAGEM NA NEBLINA (1988)



Na primeira cena do filme Paisagem na neblina (1988), dirigido pelo cineasta grego Theodoros Angelopoulos, duas crianças surgem da escuridão da noite na cidade. “Você está com medo?”, Voula pergunta. “Não, não estou com medo”, responde Alexandro. Eles mais uma vez dirigem-se a uma estação ferroviária, mas hesitam em embarcar e o trem parte. As crianças retornam para casa e no escuro total do quarto de dormir Alexandro pede para que irmã conte certa história. Voula, mesmo cansada de repeti-la, segue em frente: “No princípio era a escuridão e depois houve a luz. E a luz se separou das trevas e a terra do mar e se formaram os rios, os lagos e as montanhas. E então as flores e as árvores, os animais, os pássaros”. Naquela noite quando Voula novamente contava aquela narrativa que o irmão menor não se cansava de ouvir, ela foi interrompida pelos ruídos que denunciavam a chegada da mãe – “essa história nunca vai acabar”, reclama. A mãe abre a porta do quarto e os dois fingem estar dormindo. Esta é a única vez que ela aparece, na verdade nem chegamos a vê-la.

Essa passagem é muito importante para o decorrer da narrativa, e, inclusive, será retomada depois, para, talvez, ajudar a explicar o porquê das duas crianças investirem em uma viagem arriscada a partir do nada. com roteiro de Tonino Guerra e Giorgos Arvanitis e música de Eleni Karanidrou, conta a história de dois irmãos, Voula, de 11 anos, e Alexandro, de cinco, que decidem fugir de casa em Atenas deixando a mãe para trás, sem dinheiro ou referências, em busca do pai desconhecido, que supostamente emigrou para a Alemanha.

Tal nada gira em torno de um pai ausente e desconhecido, e uma mãe que existe, mas é tão ausente que se não existisse. Neste aspecto, embora sem se prender a citações literais, o filme de Angelopoulos remete a Homero e Ésquilo (personagens das obras épicas Odisseia e Oréstia). Por exemplo, irmão e irmã, os jovens viajantes em desacordo com o mundo lembram Electra e Orestes em sua alienação em relação à mãe e sua adoração do pai ausente. Entretanto, invertendo a Oréstia, o crime da mãe é um assassinato mais figurativo do que literal – o tio sugere que a mãe era tão promíscua que nem sabe quem são os pais das crianças, o que significa inclusive que eles podem não ser filhos do mesmo pai. O mito também é sugerido quando as crianças encontram alguém chamado Orestes – personagem que também integrou a trupe de artistas do filme A Viagem dos Comediantes (1975), também dirigido por Angelopoulos.

Depois de algumas tentativas seguidas de irem à estação de trem e embarcarem no transporte, sem sucesso, as crianças finalmente conseguem atingir a esse propósito. Entretanto, logo são descobertas porque não compraram as passagens. Deixadas aos cuidados de um funcionário de outra estação, elas acabam sendo levadas a um tio. Mas ele recusa-se a ficar com elas e explica ao acompanhante que a história delas é fruto da omissão da mãe, que não contou a eles que não existe um pai. Nesse momento Voula escuta a conversa do tio e não aceita sua versão dos fatos. Eis, então, as primeiras decepções: a rejeição de um tio que não aceita assumir a responsabilidade pelos sobrinhos e a dúvida em relação à existência do pai.

Em suas andanças, Voula e Alexandro encontram Orestes, jovem ator integrante de uma trupe teatral, que estava na estrada com seu ônibus cheio de figurinos de peças de teatro. Ele oferece carona para as crianças, que inicialmente demonstram-se relutantes em aceitar, mas o rapaz insiste, ressaltando que “não comia crianças”. Esse contato entre os três configura-se de fundamental importância para as sequências do filme, pois eles criam uma relação de afinidade, o que os torna “pessoas especiais”. Pode-se deduzir que Orestes liga-se às duas crianças por sua própria busca, como ficará mais evidente posteriormente, quando ele afasta-se da trupe teatral e acompanha os irmãos em parte de suas jornadas.

É evidente que cada um dos irmãos estabelecerá uma relação diferente com Orestes. Para Alexandro, Orestes seria a única figura masculina, dentre as que ele encontra durante seu percurso, que estaria mais próxima do ideal de “pai”, pois nele encontra carinho, atenção e segurança. Voula, por outro lado, constrói em sua mente um imaginário oposto ao do irmão na sua relação com Orestes. Ela, ao poucos, percebe-se apaixonada por ele, mas o rapaz deixará claro que aquele sentimento não será correspondido (o filme, sutilmente, esclarece o motivo: Orestes era homossexual). Isso representa mais uma decepção para a garota, depois, inclusive, de ter tido outras experiências anteriores extremamente traumatizantes.

Durante o filme, acompanhamos a narração de várias cartas para o pai feitas pelas crianças. Mas todas elas são imaginárias (como poderiam enviá-las se nada sabem sobre endereço do pai?). O caráter imaginário das cartas fica evidente quando Voula avisa ao pai que ele pode mandar uma resposta as cartas deles através do som do trem. Nessas cartas, inclusive, ela chega a se questionar sobre a continuidade daquela jornada, diante de tantas dificuldades, e demonstrar dúvidas sobre o sucesso dela. O desejo de desistir perpassa sua mente em alguns momentos. A partir de certo ponto, Voula não sonha mais com as cartas, a menina agora lida com elas mesmo estando acordada (mais especificamente, essa passagem teria ocorrido quando Voula continuou a narrar uma de suas cartas ao pai mesmo acordada).

Finalmente, quando as crianças chegam à fronteira durante a noite, percebem que ainda terão de atravessar um rio e se esconder dos soldados de guarda. Elas sobem num pequeno barco e se deixam levar pela correnteza, sumindo na escuridão. Como havia feito no começo do filme, Voula pergunta ao irmão: “Você está com medo?” “Não, eu não estou com medo”, responde o menino. De repente, ouve-se um tiro. Na cena seguinte, totalmente tomada pela névoa branca em alto contraste com a escuridão, Alexandro diz: “Acorde, já amanheceu. Estamos na Alemanha”. Voula confessa que está com medo. “Não tenha medo”, retruca Alexandro, “vou te contar uma estória”. 

Enquanto isso, a névoa vai dando lugar à imagem dele. Alexandro começa, “no princípio era a escuridão”. Ele repete a frase e levanta a mão como se estivesse acenando ou limpando uma janela para ver melhor. “E então houve a luz”. Começamos a perceber uma árvore através da névoa à distância. Alexandro e Voula correm na direção dela de mãos dadas. Na imagem final eles estão abraçados a ela. O destino dos irmãos não é concreto. Eles sobreviveram ao tiro no escuro e chegaram à Alemanha? Morreram e chegaram ao paraíso? Ou eles entraram no pedaço de filme que Orestes deu para Alexandro que trazia a imagem da árvore que ele disse que estava atrás da neblina? Angelopoulos construiu um final aberto. 




Lecco França é professor universitário, pesquisador, curador e crítico de cinema. Doutor em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia.

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