Na primeira cena do filme Paisagem
na neblina (1988), dirigido pelo cineasta grego Theodoros Angelopoulos, duas
crianças surgem da escuridão da noite na cidade.
“Você está com medo?”, Voula pergunta. “Não, não estou com medo”, responde
Alexandro. Eles mais uma vez dirigem-se a uma estação ferroviária, mas hesitam em
embarcar e o trem parte. As crianças retornam para casa e no escuro total do
quarto de dormir Alexandro pede para que irmã conte certa história. Voula,
mesmo cansada de repeti-la, segue em frente: “No princípio era a escuridão e
depois houve a luz. E a luz se separou das trevas e a terra do mar e se
formaram os rios, os lagos e as montanhas. E então as flores e as árvores, os
animais, os pássaros”. Naquela noite quando Voula novamente contava
aquela narrativa que o irmão menor não se cansava de ouvir, ela foi
interrompida pelos ruídos que denunciavam a chegada da mãe – “essa história
nunca vai acabar”, reclama. A mãe abre a porta do quarto e os dois fingem estar
dormindo. Esta é a única vez que ela aparece, na verdade nem chegamos a vê-la.
Essa passagem é muito
importante para o decorrer da narrativa, e, inclusive, será retomada depois,
para, talvez, ajudar a explicar o porquê das duas crianças investirem em uma
viagem arriscada a partir do nada. com roteiro de Tonino Guerra e Giorgos Arvanitis e música de Eleni
Karanidrou, conta a história de dois irmãos, Voula, de 11 anos, e Alexandro, de
cinco, que decidem fugir de casa em Atenas deixando a mãe para trás, sem
dinheiro ou referências, em busca do pai desconhecido, que supostamente emigrou
para a Alemanha.
Tal nada gira em
torno de um pai ausente e desconhecido, e uma mãe que existe, mas é tão ausente
que se não existisse. Neste aspecto, embora sem se prender a citações literais,
o filme de Angelopoulos remete a Homero e Ésquilo (personagens das obras épicas
Odisseia e Oréstia).
Por exemplo, irmão e irmã, os jovens viajantes em desacordo com o mundo lembram
Electra e Orestes em sua alienação em relação à mãe e sua adoração do pai
ausente. Entretanto, invertendo a Oréstia,
o crime da mãe é um assassinato mais figurativo do que literal – o tio sugere
que a mãe era tão promíscua que nem sabe quem são os pais das crianças, o que
significa inclusive que eles podem não ser filhos do mesmo pai. O mito também é
sugerido quando as crianças encontram alguém chamado Orestes – personagem que
também integrou a trupe de artistas do filme A Viagem dos Comediantes (1975), também dirigido por
Angelopoulos.
Depois de algumas
tentativas seguidas de irem à estação de trem e embarcarem no transporte, sem
sucesso, as crianças finalmente conseguem atingir a esse propósito. Entretanto,
logo são descobertas porque não compraram as passagens. Deixadas aos cuidados
de um funcionário de outra estação, elas acabam sendo levadas a um tio. Mas ele
recusa-se a ficar com elas e explica ao acompanhante que a história delas é
fruto da omissão da mãe, que não contou a eles que não existe um pai. Nesse
momento Voula escuta a conversa do tio e não aceita sua versão dos fatos. Eis,
então, as primeiras decepções: a rejeição de um tio que não aceita assumir a
responsabilidade pelos sobrinhos e a dúvida em relação à existência do pai.
Em suas andanças, Voula e
Alexandro encontram Orestes, jovem ator integrante de uma trupe teatral, que
estava na estrada com seu ônibus cheio de figurinos de peças de teatro. Ele
oferece carona para as crianças, que inicialmente demonstram-se relutantes em
aceitar, mas o rapaz insiste, ressaltando que “não comia crianças”. Esse
contato entre os três configura-se de fundamental importância para as
sequências do filme, pois eles criam uma relação de afinidade, o que os torna
“pessoas especiais”. Pode-se deduzir que Orestes liga-se às duas crianças por
sua própria busca, como ficará mais evidente posteriormente, quando ele
afasta-se da trupe teatral e acompanha os irmãos em parte de suas jornadas.
É evidente que cada um dos
irmãos estabelecerá uma relação diferente com Orestes. Para Alexandro, Orestes
seria a única figura masculina, dentre as que ele encontra durante seu
percurso, que estaria mais próxima do ideal de “pai”, pois nele encontra
carinho, atenção e segurança. Voula, por outro lado, constrói em sua mente um
imaginário oposto ao do irmão na sua relação com Orestes. Ela, ao poucos,
percebe-se apaixonada por ele, mas o rapaz deixará claro que aquele sentimento
não será correspondido (o filme, sutilmente, esclarece o motivo: Orestes era
homossexual). Isso representa mais uma decepção para a garota, depois,
inclusive, de ter tido outras experiências anteriores extremamente
traumatizantes.
Durante o filme,
acompanhamos a narração de várias cartas para o pai feitas pelas crianças. Mas
todas elas são imaginárias (como poderiam enviá-las se nada sabem sobre
endereço do pai?). O caráter imaginário das cartas fica evidente quando Voula
avisa ao pai que ele pode mandar uma resposta as cartas deles através do som do
trem. Nessas cartas, inclusive, ela chega a se questionar sobre a continuidade
daquela jornada, diante de tantas dificuldades, e demonstrar dúvidas sobre o
sucesso dela. O desejo de desistir perpassa sua mente em alguns momentos. A
partir de certo ponto, Voula não sonha mais com as cartas, a menina agora lida
com elas mesmo estando acordada (mais especificamente, essa passagem teria
ocorrido quando Voula continuou a narrar uma de suas cartas ao pai mesmo
acordada).
Finalmente, quando as
crianças chegam à fronteira durante a noite, percebem que ainda terão de
atravessar um rio e se esconder dos soldados de guarda. Elas sobem num pequeno
barco e se deixam levar pela correnteza, sumindo na escuridão. Como havia feito
no começo do filme, Voula pergunta ao irmão: “Você está com medo?” “Não, eu não
estou com medo”, responde o menino. De repente, ouve-se um tiro. Na cena
seguinte, totalmente tomada pela névoa branca em alto contraste com a escuridão,
Alexandro diz: “Acorde, já amanheceu. Estamos na Alemanha”. Voula confessa que
está com medo. “Não tenha medo”, retruca Alexandro, “vou te contar uma
estória”.
Enquanto isso, a névoa vai dando lugar à imagem dele. Alexandro começa, “no princípio era a escuridão”. Ele repete a frase e levanta a mão como se estivesse acenando ou limpando uma janela para ver melhor. “E então houve a luz”. Começamos a perceber uma árvore através da névoa à distância. Alexandro e Voula correm na direção dela de mãos dadas. Na imagem final eles estão abraçados a ela. O destino dos irmãos não é concreto. Eles sobreviveram ao tiro no escuro e chegaram à Alemanha? Morreram e chegaram ao paraíso? Ou eles entraram no pedaço de filme que Orestes deu para Alexandro que trazia a imagem da árvore que ele disse que estava atrás da neblina? Angelopoulos construiu um final aberto.
Enquanto isso, a névoa vai dando lugar à imagem dele. Alexandro começa, “no princípio era a escuridão”. Ele repete a frase e levanta a mão como se estivesse acenando ou limpando uma janela para ver melhor. “E então houve a luz”. Começamos a perceber uma árvore através da névoa à distância. Alexandro e Voula correm na direção dela de mãos dadas. Na imagem final eles estão abraçados a ela. O destino dos irmãos não é concreto. Eles sobreviveram ao tiro no escuro e chegaram à Alemanha? Morreram e chegaram ao paraíso? Ou eles entraram no pedaço de filme que Orestes deu para Alexandro que trazia a imagem da árvore que ele disse que estava atrás da neblina? Angelopoulos construiu um final aberto.
Lecco França é professor universitário,
pesquisador, curador e crítico de cinema. Doutor em Letras pelo Programa de
Pós-graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia.
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